|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO
Americanos votaram como se nada tivesse acontecido
THOMAS FRIEDMAN
DO "NEW YORK TIMES"
Bem, como dizia minha avó, pelo menos ainda tenho minha saúde. Eu freqüentemente começo
minhas colunas entrevistando a
mim mesmo. Fiz isso ontem, perguntando a mim mesmo: por que
eu não me senti totalmente deprimido depois de George H. W.
Bush derrotar Michael Dukakis,
ou mesmo quando George W.
Bush derrotou Al Gore? Por que
acordei ontem me sentindo tão
profundamente incomodado?
Resposta: as diferenças que tinha com Bush pai diziam respeito
às políticas corretas. Houve muita
coisa que ele fez que acabei por
admirar. E, quando George W.
Bush foi eleito com uma plataforma de conservadorismo ""com
compaixão", após basear a campanha numa posição de centro,
supus que a mesma coisa aconteceria com ele (estava enganado).
O que me incomodou ontem foi
a sensação de que esta eleição foi
decidida por uma grande manifestação de apoio a Bush por pessoas que não apenas são a favor de
políticas diferentes das que defendo -são a favor de um EUA totalmente diferente. Não discordamos apenas sobre o quê a América deveria estar fazendo -discordamos sobre o que a América é.
Serão os EUA um país que não
se intromete nas preferências sexuais das pessoas e nos casamentos que elas querem contrair? Serão um país que autoriza as mulheres a exercer controle sobre
seus próprios corpos? Serão um
país em que a linha divisória entre
igreja e Estado, legada a nós pelos
fundadores do país, deve se manter intacta? Serão um país onde a
religião não passa por cima da
ciência? E, o que é mais importante, serão um país cujo presidente
mobiliza suas energias morais
profundas para nos unir, em lugar
de nos dividir internamente e nos
distanciar do resto do mundo?
Em um nível, esta eleição foi sobre nada. Nenhum dos problemas reais que confrontam o país
chegou a ser discutido de fato. Em
outro nível, porém, inesperadamente, a eleição foi sobre tudo.
Isso aconteceu em parte porque
há tantas vagas na Suprema Corte
em jogo, e em parte porque a base
de Bush está pressionando tanto
para legislar sobre questões sociais e ampliar os limites da religião, a ponto de criar a impressão
de que estávamos reescrevendo a
Constituição, não elegendo um
presidente. Eu me senti como se
tivesse me cadastrado para votar,
mas, quando saí para as urnas, me
vi no meio de uma Constituinte.
Os resultados da eleição reafirmaram essa sensação. Apesar de
uma performance totalmente incompetente na Guerra no Iraque
e de uma economia estagnada,
Bush manteve o mesmo núcleo
básico de Estados que conquistou
em 2000, como se nada disso tivesse acontecido. A impressão
que se teve foi que as pessoas não
votaram com base em seu desempenho. Parecia que estavam votando no time pelo qual torcem.
Não foi uma eleição. Foi uma
identificação com estações. Aposto qualquer coisa que, se as cédulas eleitorais não tivessem tido os
nomes de Bush e Kerry impressas
nelas, mas tivessem, em lugar disso, a pergunta: ""Você assiste à Fox
TV ou lê o "New York Times'?", o
Colégio Eleitoral teria se dividido
de maneira exatamente igual.
Meu problema com os fundamentalistas cristãos que apóiam
Bush não é sua energia espiritual,
nem o fato de eu ter uma religião
diferente. É a maneira como Bush
e eles vêm utilizando essa energia
religiosa para promover divisões
e intolerância dentro do país e fora dele. Respeito essa energia moral, mas eu gostaria que os democratas encontrassem uma maneira de usá-la para fins diferentes.
O teórico político Michael J.
Sandel, de Harvard, observou:
"Os democratas cederam aos republicanos o monopólio sobre as
fontes morais e espirituais da política americana. Eles não vão se
recuperar, como partido, enquanto não voltarem a ter candidatos capazes de comunicar-se
com esses anseios morais e espirituais -mas transformá-los para
finalidades progressivas na política interna e externa".
Sempre tive um lema simples
quando o assunto é política: nunca se coloque numa posição em
que seu partido só pode ganhar se
seu país fracassar. Esta coluna não
vai, de maneira alguma, torcer para Bush fracassar para que o Partido Democrata possa dar a volta
por cima. Se os democratas derem a volta por cima, isso não deve acontecer por erro dos republicanos, porque o país terá mergulhado num caos total, mas porque
eles terão indicado um candidato
capaz de vencer com uma mensagem positiva que encontre eco
junto ao núcleo central dos EUA.
Enquanto isso, fala-se muito
que Bush teria ganho um mandato para levar adiante suas políticas
de extrema direita. Sim, mas ele
também tem um compromisso
marcado -com a história. Se
Bush conseguir resgatar a Guerra
do Iraque do desastre, encontrar
uma solução para a crise em torno
de nossos direitos adquiridos
-algo que só poderá ser feito
com uma abordagem bipartidária
e uma política fiscal mais sadia-,
melhorar a competitividade dos
EUA, impedir o Irã de enveredar
pelo caminho nuclear e encontrar
uma solução para nosso arrocho
energético, a história dirá que ele
utilizou seu mandato para comandar com grande efeito.
Se ele promover ainda mais cortes nos impostos e não conseguir
resolver nossos problemas reais,
seu compromisso com a história
será desagradável, não importa o
mandato que tenha recebido.
Tradução de Clara Allain
Texto Anterior: Reeleição nos EUA: Conservadores agora querem sua "revolução" Próximo Texto: Opinião: Um mundo à parte Índice
|