São Paulo, quarta-feira, 05 de novembro de 2008

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"Guerra ao terror" é nome vazio para ações incoerentes

Novo presidente tem que recomeçar do zero estratégia de segurança nacional

ANDREW J. BACEVICH

UMA SEMANA atrás eu tive uma longa conversa com um oficial de quatro estrelas que, até aposentar-se recentemente, exerceu papel central na direção da "guerra global ao terror". Perguntei qual é, exatamente, a estratégia que guia a condução desta guerra pelo governo Bush. Sua resposta: "Não existe nenhuma".
Para os fornecedores de equipamentos militares, lobistas, membros de centros de estudos, militares ambiciosos e apresentadores de talk shows, a "guerra global ao terror" é um empreendimento de oportunidades, que promete se estender por décadas.
Entretanto, esse mesmo empreendimento já se tornou em grande medida uma ficção, uma frase pronta empregada para dar aparência de coesão a uma multiplicidade de atividades que, na realidade, são contraditórias e contraproducentes. A "guerra ao terror" está para o terrorismo como a guerra às drogas está para a dependência de drogas. Declarar "guerra" permanente sustenta a farsa de se estar enfrentando um problema. A guerra às drogas é uma farsa cara. E o mesmo se aplica à "guerra ao terror".
Qualquer pessoa que deseje identificar alguma idéia unificadora que explique as ações dos EUA no Grande Oriente Médio não poderá deixar de se decepcionar.
Durante a Segunda Guerra, o presidente Franklin Roosevelt apresentou como princípios centrais "Alemanha primeiro" e "rendição incondicional". No início da Guerra Fria, o governo Truman criou o conceito da contenção. Mas hoje, sete anos após o início de sua guerra ao terror, o governo Bush está sem norte.
Se qualquer germe de estratégia chegou a existir -a despropositada visão neoconservadora de empregar o poder americano para "transformar" o mundo islâmico-, os acontecimentos demoliram suas premissas.
Em lugar de uma única guerra, os EUA estão engajados em várias.
A primeira no ranking de importância é a do Iraque. O presidente Bush jamais vai recuar de sua posição de insistir que é no Iraque que está o "fronte central" do conflito que ele iniciou após o 11 de Setembro. Bush e seus derradeiros defensores querem que acreditemos que o aumento do contingente militar no Iraque trouxe a vitória para o horizonte -e, com ela, a perspectiva de ser redimido esse esforço mal concebido.
Se o presidente puder deixar o comando do país derramando garantias de que existe luz no fim do túnel mesopotâmico, ele vai se declarar justificado. E, se os fatos reais subseqüentes a 20 de janeiro não saírem bem, ele sempre poderá culpar seu sucessor.
A próxima no ranking é a guerra órfã. Trata-se do Afeganistão, conflito em seu oitavo ano. Os fatos ocorridos no Afeganistão até pouco tempo atrás atraíam pouca atenção.
Recentemente, as autoridades americanas vêm tomando nota do fato de que as coisas andam mal no Afeganistão, política e militarmente. A Al Qaeda persiste. O Taleban está se reafirmando. A expectativa de que a Otan poderia acudir em socorro foi ilusória. Além de possibilitar ao Afeganistão reconquistar seu status de maior produtor mundial de ópio, os esforços dos EUA de pacificar esse país vêm dando poucos frutos.
O Pentágono chama sua intervenção no Afeganistão de operação Liberdade Duradoura. Infelizmente, é o adjetivo que define a campanha: interminável. Excluindo uma redefinição radical de seu objetivo, ela promete continuar por muito tempo.
Enquanto isso, no vizinho Paquistão está acontecendo uma guerra escondida à vista de todos. Relatos sobre ações militares dos EUA no Paquistão já viraram parte do dia-a-dia. Embora a Casa Branca não chame isso de guerra, é isso o que ela é -uma guerra de atrito, na qual estamos matando tanto terroristas quanto não-combatentes.
Finalmente, temos a guerra de Condoleezza Rice. Este conflito, que não envolve forças americanas diretamente, pode ser o mais importante. A guerra que a secretária de Estado fez sua é o conflito entre Israel e os palestinos. Tendo durante anos feito pouco caso da insistência dos muçulmanos de que a situação dos palestinos constitui um problema maior, Rice agora adere a esse ponto de vista. Ela jurou mediar o fim desse conflito antes de deixar o cargo, em janeiro de 2009.
Considerando que Rice contribuiu pouco ao esforço, em termos de idéias novas, suas perspectivas de sucesso parecem ser pequenas. No entanto, com Rice e o problema palestino acontece o mesmo que com Bush e o Iraque: ela tem muita coisa investida nesse esforço. Se fracassar, ela deixará o governo tendo realizado nada.
Não existe nada de inerentemente errado em combater em várias frentes, desde que as ações sejam compatíveis e que, juntas, contribuam para o êxito global. Não é esse o caso com a "guerra ao terror".
Em lugar disso, temos uma ilustração de algo que Winston Churchill certa vez descreveu como um pudim sem tema: uma guerra destituída de objetivo estratégico. Essa ausência de coesão é tanto um desastre quanto uma oportunidade. Um desastre porque gastamos recursos imensos, recebendo pouquíssimo em troca. Os defensores de Bush discordam.
Eles dão crédito ao presidente por ter evitado outro 11 de Setembro -uma realização elogiável, mas que pode ser atribuída sobretudo ao fato de que os EUA deixaram de descuidar-se da segurança nos aeroportos. Argumentar que a ocupação do Iraque previu ataques terroristas contra os EUA equivale a afirmar que a ocupação israelense da Cisjordânia preveniu ataques terroristas contra o Estado de Israel.
Mas o vazio estratégico é também uma oportunidade. Quando se trata de segurança nacional, o próximo governo não precisará perder tempo discutindo quais problemas requerem ação prioritária.
Há perguntas de primeira ordem que exigem atenção.
Como devemos avaliar a ameaça? Que princípios devem fundamentar nossa resposta? Que formas de poder são mais relevantes à implementação dessa resposta? Os meios à disposição são adequados? Se não, como devem ser ajustadas as prioridades nacionais? Em vista dos desafios, como o governo deve se organizar? Quem vai liderar (organismos e indivíduos)?
A cada uma dessas perguntas, o governo Bush apresentou respostas erradas. O próximo precisa fazer melhor. O lugar para começar é o reconhecimento franco de que a "guerra ao terror" na prática já deixou de existir. Quando se trata de estratégia de segurança nacional, temos de recomeçar do zero.


ANDREW BACEVICH é professor de relações internacionais na Universidade de Boston e coronel aposentado do Exército. É autor de "The Limits of Power: The End of American Exceptionalism". Este artigo foi distribuído pela Agence Global

Tradução de CLARA ALLAIN


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