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São Paulo, sexta-feira, 06 de junho de 2003

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COMENTÁRIO

Escândalos gêmeos

RENATA LO PRETE
DA REPORTAGEM LOCAL

É possível argumentar que se dedica demasiado espaço ao assunto. Afinal, cabeças rolam com frequência do topo da hierarquia de grandes empresas.
Para entender o barulho em torno da queda do editor-executivo do "New York Times", deve-se lembrar que: a) esse é provavelmente o cargo mais prestigioso no mundo do jornalismo; b) Howell Raines o perdeu em circunstâncias inéditas na história do jornal.
Na esteira dos casos Jayson Blair (o repórter que inventava e plagiava) e Richard Bragg (o repórter que apresentava como seu o trabalho de colaboradores), Raines, o breve, caiu 14 meses depois de assumir. Nada extraordinário em outras publicações, mas, no "Times", editores-executivos costumam permanecer na função em torno de sete anos, deixando-a ao completar 65 -Raines tem 60.
Somente um deles, James Reston, ficou menos tempo (13 meses entre 1968 e 1969). Sua saída, no entanto, nada teve de demeritória. Figura lendária na história do diário, ocupou o posto para conduzir uma intervenção a pedido da família proprietária.
Além de durar pouco, Raines saiu corrido. Não devem ser levadas a sério as palavras bonitas do publisher Arthur Sulzberger Jr., que ontem pediu à Redação aplausos para Raines e seu número dois, também de saída, por "colocarem os interesses deste jornal acima de seus próprios".
Na contramão da praxe, Raines não ganhou coluna para escrever nem outro prêmio de consolação. Como brincou Eric Alterman, crítico de mídia da revista "The Nation", saiu do prédio direto para a fila do seguro-desemprego.
Os casos Blair e Bragg colocaram em pauta questões que vão além da responsabilidade individual dos fraudadores. A principal delas diz respeito a uma cultura jornalística que, cada vez mais, premia o detalhe sensacional e a declaração "colorida" em detrimento de solidez na apuração.
Não resta dúvida de que ambos foram longe porque bem avaliados e promovidos por seus chefes.
Outra questão é a do uso indiscriminado de fontes anônimas. Sem perder de vista que o "Times" é, não obstante a atual barafunda, um dos melhores jornais do mundo, vale observar seu gosto exagerado por textos baseados em fontes não identificadas -recurso do qual Blair se fartou para inventar personagens e emplacar ficção na Primeira Página.
Tudo isso já havia acontecido na casa dos outros. Mesmo o "Times" tem em seu passado erros de avaliação do noticiário mais lesivos do que as mentiras tolas de Blair.
Inédito é ver colocada em xeque a "integridade mítica do "Times'", como definiu, em entrevista à Folha, Martin Wolff, que assina na revista "New York" uma das mais respeitadas colunas sobre mídia.
De volta à demissão, há pelo menos duas formas de explicá-la. Uma delas atribui a queda ao temperamento autoritário de Raines, adepto de um sistema que elegeu algumas estrelas e alienou a máquina "histórica" da Redação.
De fato, mas: a) não é muito diferente em outras publicações, e o próprio "Times" já teve pelo menos um "ditador" de sucesso como editor-executivo (Abe Rosenthal, nos anos 70); b) com sete prêmios Pulitzer dados ao jornal em um único ano de sua gestão, é provável que Raines pudesse seguir autoritário por anos não fossem os "escândalos gêmeos".
A outra explicação diz respeito à "integridade mítica", diferencial de que a empresa controladora do "Times" dispõe em seus planos de expansão -o grupo quer, por exemplo, comprar uma TV em Nova York. É possível competir com conglomerados maiores, desde que o valor da marca esteja intacto. Por isso Raines teve de ir.
A esperança de Sulzberger Jr. é que a cabeça do editor-executivo baste. Para Wolff, não há certeza sobre isso. "Ainda está em questão a sobrevivência do publisher."


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