São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004

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COMENTÁRIO

Em nome da "liberdade", Bush insulta a história

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

Para muitos veteranos da Segunda Guerra, deve ter sido um insulto a comparação que Bush fez do atual conflito do Iraque com aquele que destruiu o Terceiro Reich. Nos dois casos, sugeriu ele, tratou-se de lutar para a "liberdade prevalecer". O pai do presidente, ele mesmo ex-combatente da guerra contra o Eixo, tentou explicar as palavras do filho, dono de duvidoso histórico militar. Disse Bush sênior que "o escopo da Segunda Guerra pode ter sido maior [que o da Guerra do Iraque], mas a ansiedade e a dor não foram menores".
Quando a retórica bushiana chega a esse ponto, quando o que conta são a "ansiedade e a dor", e não as conseqüências diplomáticas e geopolíticas desastrosas dos atos do presidente americano, é o caso de alertar Bush filho, parodiando um famoso slogan contra Bush pai: "É a história, estúpido".
Para refrescar a memória, o escopo da Segunda Guerra Mundial foi maior em pelo menos três grandes aspectos.
Primeiro: a coalizão forjada para derrotar o nazi-fascismo incluiu todas as grandes democracias ocidentais, e não um punhado de países cujo interesse na aliança com os americanos e britânicos na Guerra do Iraque passa em grande medida pela necessidade de fazer caixa.
Segundo: nos anos 40, tratava-se de derrotar um inimigo declarado dos valores e dos ideais liberais; já Saddam Hussein, embora tenha sido indubitavelmente um ditador sanguinário, não representava uma ameaça desse nível a seus inimigos ocidentais. (Há não muitos anos, Saddam foi inclusive parceiro daqueles que hoje o mantêm encarcerado. Já Hitler, por mais que os conservadores europeus o admirassem veladamente por seu anticomunismo feroz, jamais foi visto como sócio aceitável -até Realpolitik tem limite.)
Terceiro: há seis décadas, Hitler foi contido quando procurava, com vontade indiscutível, expandir o "espaço vital" germânico, numa onda de morte e destruição que dividiu a história em dois. Saddam, isolado por anos de embargos e pela própria decadência de seu regime -de que os capacetes furados dos soldados de sua "elite militar" foram a prova mais eloqüente-, não pode ser considerado um equivalente do Führer nem como piada para o chá da tarde no Salão Oval.
Consinta-se, em favor de Bush, que é válido comparar o extremismo islâmico terrorista, simbolizado atualmente por Osama bin Laden, com a essência do regime nazista. Trata-se de conceitos totalitários de mundo: ambos entendem a liberdade (que inclui leis positivas, respeito aos direitos humanos e debate político irrestrito) como uma forma de "atraso" do processo histórico que resultará, para os nazistas, num mundo sem as minorias degeneradas e, para os extremistas islâmicos, num mundo exclusivamente muçulmano. Quem for julgado culpado pelos dirigentes totalitários de oferecer resistência à aceleração dessa história -isto é, aquele que contradisser o processo- deve ser fisicamente eliminado.
Dessa maneira, aproxima esses dois "projetos" o terrorismo, o meio ideal para o estabelecimento do reino do medo, no qual a "história" se realiza descartando-se a própria humanidade. Como diz Hanna Arendt, "o terror é a essência do regime totalitário".
Justificada a necessidade do combate sem tréguas ao terror, o problema é quando Bush diz que a Guerra do Iraque é parte dessa campanha geral de defesa da liberdade contra o terrorismo. Como já ficou claro a esta altura, os argumentos para derrubar Saddam não foram honestos -e, no entanto, Bush segue repetindo-os, mesmo ao custo de ver seu país perder o imenso patrimônio de credibilidade de que dispunha.
Ao inventar perigos onde não há e usar arbitrariamente seu imenso poder em nome de uma suposta "defesa da liberdade", o presidente dos EUA também parece querer acelerar a história, ficando a um passo de parecer-se com seus piores inimigos.


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