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COMENTÁRIO
Em nome da "liberdade", Bush insulta a história
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
Para muitos veteranos da Segunda Guerra, deve ter sido um
insulto a comparação que Bush
fez do atual conflito do Iraque
com aquele que destruiu o Terceiro Reich. Nos dois casos, sugeriu
ele, tratou-se de lutar para a "liberdade prevalecer". O pai do
presidente, ele mesmo ex-combatente da guerra contra o Eixo, tentou explicar as palavras do filho,
dono de duvidoso histórico militar. Disse Bush sênior que "o escopo da Segunda Guerra pode ter
sido maior [que o da Guerra do
Iraque], mas a ansiedade e a dor
não foram menores".
Quando a retórica bushiana
chega a esse ponto, quando o que
conta são a "ansiedade e a dor", e
não as conseqüências diplomáticas e geopolíticas desastrosas dos
atos do presidente americano, é o
caso de alertar Bush filho, parodiando um famoso slogan contra
Bush pai: "É a história, estúpido".
Para refrescar a memória, o escopo da Segunda Guerra Mundial
foi maior em pelo menos três
grandes aspectos.
Primeiro: a coalizão forjada para derrotar o nazi-fascismo incluiu todas as grandes democracias ocidentais, e não um punhado de países cujo interesse na
aliança com os americanos e britânicos na Guerra do Iraque passa
em grande medida pela necessidade de fazer caixa.
Segundo: nos anos 40, tratava-se de derrotar um inimigo declarado dos valores e dos ideais liberais; já Saddam Hussein, embora
tenha sido indubitavelmente um
ditador sanguinário, não representava uma ameaça desse nível a
seus inimigos ocidentais. (Há não
muitos anos, Saddam foi inclusive
parceiro daqueles que hoje o
mantêm encarcerado. Já Hitler,
por mais que os conservadores
europeus o admirassem veladamente por seu anticomunismo feroz, jamais foi visto como sócio
aceitável -até Realpolitik tem limite.)
Terceiro: há seis décadas, Hitler
foi contido quando procurava,
com vontade indiscutível, expandir o "espaço vital" germânico,
numa onda de morte e destruição
que dividiu a história em dois.
Saddam, isolado por anos de embargos e pela própria decadência
de seu regime -de que os capacetes furados dos soldados de sua
"elite militar" foram a prova mais
eloqüente-, não pode ser considerado um equivalente do Führer
nem como piada para o chá da
tarde no Salão Oval.
Consinta-se, em favor de Bush,
que é válido comparar o extremismo islâmico terrorista, simbolizado atualmente por Osama bin Laden, com a essência do regime nazista. Trata-se de conceitos totalitários de mundo: ambos entendem a liberdade (que inclui leis
positivas, respeito aos direitos humanos e debate político irrestrito)
como uma forma de "atraso" do
processo histórico que resultará,
para os nazistas, num mundo sem
as minorias degeneradas e, para
os extremistas islâmicos, num
mundo exclusivamente muçulmano. Quem for julgado culpado
pelos dirigentes totalitários de
oferecer resistência à aceleração
dessa história -isto é, aquele que
contradisser o processo- deve
ser fisicamente eliminado.
Dessa maneira, aproxima esses
dois "projetos" o terrorismo, o
meio ideal para o estabelecimento
do reino do medo, no qual a "história" se realiza descartando-se a
própria humanidade. Como diz
Hanna Arendt, "o terror é a essência do regime totalitário".
Justificada a necessidade do
combate sem tréguas ao terror, o
problema é quando Bush diz que
a Guerra do Iraque é parte dessa
campanha geral de defesa da liberdade contra o terrorismo. Como já ficou claro a esta altura, os
argumentos para derrubar Saddam não foram honestos -e, no
entanto, Bush segue repetindo-os,
mesmo ao custo de ver seu país
perder o imenso patrimônio de
credibilidade de que dispunha.
Ao inventar perigos onde não
há e usar arbitrariamente seu
imenso poder em nome de uma
suposta "defesa da liberdade", o
presidente dos EUA também parece querer acelerar a história, ficando a um passo de parecer-se
com seus piores inimigos.
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