São Paulo, domingo, 06 de junho de 2004

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ARTIGO

Eis a história de como a Al Qaeda se desenvolveu e atacou os EUA

RICHARD CLARKE

Do lado de dentro da Casa Branca, do Departamento de Estado e do Pentágono por 30 anos, eu desdenhava aqueles que saíam do governo e corriam para escrever sobre ele. De certa maneira parecia inadequado expor, conforme Bismarck cunhou, "a fabricação da salsicha". No entanto, depois de sair do serviço federal, percebi que muito do que eu achava que fosse de conhecimento geral era, na verdade, obscuro para muitos que queriam saber.
Perguntavam-me com freqüência: "Como as coisas funcionaram exatamente no 11 de setembro, o que aconteceu?" Dando uma olhada no material disponível, descobri que não havia boas fontes, nenhuma narração confiável daquele dia que a história irá ter por muito tempo como um marco. Comecei, então, a pensar em lecionar para alunos de pós-graduação em Georgetown e Harvard e me dei conta de que não havia um só relato interno do fluxo da história recente que nos mostrasse o 11 de Setembro e os eventos que se seguiram.
Como os eventos de 2003 tiveram influência sobre o Iraque e o restante do mundo, fiquei cada vez mais preocupado com o número demasiado de meus caros concidadãos que está sendo enganado. A vasta maioria dos americanos crê, já que a administração Bush insinua isso, que Saddam Hussein tivesse algo a ver com os ataques da Al Qaeda à América.
Muitos achavam que a administração Bush estivesse fazendo um bom trabalho de combate ao terrorismo quando, na realidade, a administração desperdiçou a chance de eliminar a Al Qaeda e, em vez disso, fortaleceu nossos inimigos indo por uma tangente completamente desnecessária, a invasão do Iraque. Uma nova Al Qaeda surgiu e está mais forte a cada dia, em parte devido às nossas próprias ações e inércias. Ela é de muitas maneiras um oponente mais difícil do que a ameaça original que enfrentávamos antes do 11 de Setembro, e não estamos fazendo o que é preciso para tornar a América mais segura contra essa ameaça.
Esta é a história, de acordo com meu ponto de vista, de como a Al Qaeda se desenvolveu e atacou os Estados Unidos em 11 de setembro de 2001. É uma história da CIA e do FBI, que só perceberam mais tarde que havia uma ameaça aos Estados Unidos e foram incapazes de detê-la mesmo depois de concordarem em que a ameaça era real e significativa. É ainda a história de quatro presidentes.
Ronald Reagan (1981-89), que não revidou o assassinato de 278 fuzileiros navais dos Estados Unidos em Beirute e que violou sua própria política antiterrorismo, negociando armas por reféns no que veio a ser chamado de escândalo Irã-Contras.
George H. W. Bush (1989-93), que não revidou o assassinato cometido por líbios de 259 passageiros do vôo 103 da Pan Am, que não tinha uma política oficial contra o terrorismo e que deixou Saddam Hussein no posto, o que demandou que os Estados Unidos deixassem uma grande presença militar na Arábia Saudita.
Bill Clinton (1993-2001), que identificou o terrorismo como a maior ameaça pós-Guerra Fria e agiu para melhorar nossas habilidades contra o terrorismo, que (pouco conhecido pelo público) subjugou o terrorismo antiamericano do Iraque e do Irã e derrotou uma tentativa da Al Qaeda de dominar a Bósnia, mas que, enfraquecido por constantes ataques políticos, não conseguiu fazer a CIA, o Pentágono e o FBI agirem a contento para lidar com a ameaça.
George W. Bush, que não agiu antes do 11 de Setembro em relação à ameaça da Al Qaeda, apesar de repetidas advertências, e depois teve uma sorte política inesperada por tomar providências obviamente insuficientes depois dos ataques e que lançou uma guerra desnecessária e dispendiosa no Iraque, que fortaleceu o movimento terrorista fundamentalista radical islâmico no mundo inteiro.
Lamentavelmente, esta também é a história de como a América foi incapaz de criar um consenso de que a ameaça era significativa e de fazer tudo o que fosse preciso para lidar com uma nova ameaça até que a ameaça de fato matou milhares de americanos.
Pior ainda, é a história de como, mesmo após os ataques, a América não eliminou o movimento Al Qaeda, que se metamorfoseou numa ameaça disseminada e evasiva; como, em vez disso, lançamos o contrafiasco no Iraque; como a administração Bush politizou o contraterrorismo como um meio de assegurar vitórias eleitorais; como vulnerabilidades cruciais de segurança interna perduram e quão pouco está sendo feito para tratar o desafio ideológico de terroristas distorcendo o islã e transformando-o numa nova ideologia do ódio.
O acaso me colocou em lugares-chave do governo americano num período em que uma era estava acabando e outra nascendo. A Guerra Fria, que começou antes de eu nascer, estava acabando quando fiz 40 anos. Com o início da nova era, comecei no que veio a ser uma década sem precedentes de serviços contínuos na Casa Branca, trabalhando para os três últimos presidentes.
Com a sucessão dos eventos de 2003, comecei a sentir a obrigação de escrever o que eu sabia para meus caros concidadãos e para aqueles que futuramente possam querer examinar este período. Este livro é o cumprimento dessa obrigação. No entanto ele tem suas falhas. É uma narrativa na primeira pessoa, não uma história acadêmica. Outros que estiveram envolvidos em alguns desses eventos certamente terão lembranças diferentes. Não digo que eles estejam errados, mas apenas que esta narrativa é o que minha memória revela para mim.


Trecho do prefácio do livro "Contra Todos os Inimigos", que será lançado hoje no Brasil


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