São Paulo, sexta-feira, 06 de outubro de 2000

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REVOLUÇÃO NOS BÁLCÃS
Onda popular toma as ruas de Belgrado, manda ultimato a Milosevic, recebe apoio de integrantes do Estado e declara vitória
"Boa noite, Sérvia liberada", diz Kostunica

STEVE CRAWSHAW
DO "THE INDEPENDENT", EM BELGRADO

A Sérvia inteira parecia estar em movimento ontem -tanto literal quanto politicamente. Horas antes do início programado da manifestação da oposição em Belgrado, uma fila de carros e ônibus já se dirigia à capital para exigir o reconhecimento da vitória eleitoral que o governo insistia em negar.
O dia do ajuste de contas chegara. Cartazes da oposição apareceram na estrada entre Kolubara e Belgrado. Um deles dizia: "Não adianta. Um mais um ainda é igual a dois". A aritmética é, de fato, simples, e os mineiros de Kolubara ajudaram a torná-la ainda mais simples com sua greve.
Os líderes da oposição haviam dado um ultimato simples a Slobodan Milosevic: teria de deixar o governo até as 15h.
Às 10h51, porém, a rádio estatal anunciava que o Tribunal Constitucional havia anulado os resultados da eleição presidencial de 24 de setembro e ordenado que fosse realizada uma nova eleição ao término do mandato de Milosevic, o que, na prática, o deixaria no poder até o verão de 2001. O grande mago subestimara a determinação da população em ver respeitado o mandato que confiara a Vojislav Kostunica -e o erro seria fatal.
Pouco depois, até mesmo os integrantes da polícia em que Milosevic tanto confiava começaram a tirar seus coletes e capacetes e a se juntar às centenas de milhares de pessoas que chegavam ao centro de Belgrado.
Às 14h40, a multidão diante do edifício do Parlamento iugoslavo já era tão numerosa que a polícia começou a disparar gás lacrimogêneo contra as pessoas que abriam caminho em direção ao prédio. A ação da polícia durou pouco, pois assim que uma onda de manifestantes era empurrada para trás, outra tomava seu lugar.
Por volta das 15h50, a pressão se tornava impossível de deter. Grupos de manifestantes corriam para dentro do prédio. Outros -de agricultores robustos a sacerdotes vestidos de preto- quebravam janelas e agitavam bandeiras iugoslavas nos balcões do edifício.
Do lado de dentro, grupos de jovens, muitos deles embriagados, destruíam móveis e computadores e iniciavam incêndios. Documentos eram espalhados pelo chão, assim como retratos de autoridades, arrancados de suas molduras quebradas. Do lado de fora, manifestantes agitavam bandeiras da Iugoslávia.
"O terror reina em Belgrado", dizia a televisão estatal pró-Milosevic. A mensagem de Milosevic foi interrompida logo após as 16h. Uma estação de rádio independente de Belgrado informou que tiros eram ouvidos diante do edifício da televisão estatal.
Então, uma máquina de terraplanagem tomada pelos manifestantes arrombou a entrada do edifício, e os manifestantes correram para dentro. Os policiais fugiram pelos fundos ou se renderam. Às 17h20, a oposição declarava que tomara conta da televisão estatal.
Choques esporádicos ocorriam entre manifestantes e as fileiras cada vez menores da polícia fiel a Milosevic. Na maioria dos casos, porém, as multidões vagavam pelas ruas da cidade sem serem impedidas. Muitos usavam chapéus de papel com o slogan "Vamos resistir". Passavam diante das lojas, algumas delas ostentando cartazes dizendo "Fechado por motivo de roubo" -alusão à afirmação oposicionista de que Milosevic teria fraudado as eleições.
"O cordão policial foi derrotado. Estou dizendo a seus generais: quando tentarem usar o Exército contra o povo, o Exército se voltará contra eles", disse um ex-comandante militar, o general Momcilo Perisic, que agora apóia a oposição.
Às 17h32, o Partido Socialista, de Milosevic, divulgava um comunicado atacando a oposição por provocar distúrbios e violência, dizendo que iria lutar contra ela "com todos os meios, para garantir a vida pacífica". Mas a ameaça não foi ouvida.
Às 18h, a rádio independente B292 informava que um destacamento de cerca de 15 veículos blindados com integrantes da polícia especial havia se retirado. Pouco antes das 19h, o porta-voz da oposição, Cedomir Jovanovic, dizia que o general Perisic estava negociando com o Exército.
No início da noite, a agência de notícias estatal "Tanjug" anunciou que já não era mais fiel a seu antigo chefe, juntando-se a vários órgãos da mídia estatais importantes que trocaram de lado ontem.
Ao cair da noite, Kostunica ergueu-se no balcão do prédio do Parlamento, em meio aos gritos de vitória da multidão.
"Boa noite, Sérvia liberada", disse às dezenas de milhares de pessoas reunidas na praça. "A Sérvia corre na reta da vitória neste momento, e nesse caminho não existe Slobodan Milosevic. O que estamos fazendo hoje é história. E este povo a está fazendo sem a ajuda de ninguém." Em resposta, a multidão gritou "ele está acabado" e "prendam Slobo".


Tradução de Clara Allain



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