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Pacificada, favela xiita em Bagdá ainda é foco de tensão
Calma na superfície, Cidade Sadr ainda tem milicianos fiéis
a clérigo radical antigoverno que hoje vive no Irã
Derrota de Moqtada al Sadr e
a imposição do Estado de
direito em seu antigo bastião
estão entre as maiores
conquistas do premiê Maliki
DO ENVIADO A BAGDÁ
A cena era impensável há
pouco mais de um ano. Um policial uniformizado orienta
tranquilamente o trânsito num
cruzamento no coração da megafavela Cidade Sadr, bastião
xiita que durante anos foi dominado por milicianos hostis a
qualquer presença do governo.
A área tornou-se um retrato
da situação no Iraque, com seus
avanços e desafios, sete anos
após a invasão americana.
Cidade Sadr hoje se parece
com qualquer outro bairro pobre do Oriente Médio. Há disputadas feiras de legumes ao ar
livre, jovens jogando futebol
em campos de terra e mulheres
cobertas com véu preto da cabeça aos pés.
"Está anoitecendo e crianças
ainda brincam nas ruas", aponta o aposentado Ali Darani, ao
receber a Folha, sentado no
chão de sua casa. "Aqui chegou
a haver combates e explosões
todos os dias, passávamos dias
sem poder sair de casa."
A área chegou a ser a mais
violenta de Bagdá após a invasão de 2003. Nesse período, o
pesadelo dos EUA e do novo
governo iraquiano ordenado
por Washington era o clérigo
radical Moqtada al Sadr, influente líder comunitário nascido numa família inimiga de
Saddam Hussein e próxima dos
aiatolás iranianos.
A primeira medida de Sadr
após a queda do regime foi mudar o nome do bairro, até então
conhecido como Cidade Saddam, apelação que havia sido
imposta pelo então ditador sunita como uma provocação
contra seus desafetos xiitas que
ali moravam.
A queda de Saddam foi um
alívio para os xiitas, mas Sadr
logo rejeitou a presença americana no Iraque. Jurando nunca
se render à ocupação, ele fundou o Exército de Mehdi, um
grupo inspirado na crença xiita
pela qual o imã Mehdi voltará à
Terra para ajudar Jesus a derrotar o demônio.
A exemplo de outros grupos
islâmicos, como o palestino
Hamas e o libanês Hizbollah, o
Exército de Mehdi surgiu com
a vocação de mesclar luta armada e assistência social aos
seus simpatizantes.
A guerrilha fez com que os
EUA nunca pudessem considerar Cidade Sadr uma área ocupada. Apesar da superioridade
tecnológica, dezenas de militares americanos morreram em
combates no labirinto de ruelas do bairro. O Exército de
Mehdi não só resistiu à invasão
como lançou ataques aos ocupantes no centro de Bagdá e em
santuários xiitas como Najaf e
Karbala.
Fortalecido pelas vitórias em
combates, o grupo impôs sua
própria lei sobre os mais de um
milhão de habitantes de Cidade Sadr. Um toque de recolher
noturno foi imposto, comerciantes eram extorquidos, e o
uso do véu passou a ser obrigatório para as mulheres. A rede
de amparo social funcionou
pouco, alimentando em silêncio uma crescente insatisfação
popular. Imensos cartazes de
Sadr foram espalhados pelo
bairro, cujos acessos eram controlados pelos milicianos.
Houve várias tentativas de
cessar-fogo entre Sadr e os
EUA, descumpridas por ambos
os lados. Quando os americanos suspenderam a interferência direta na política iraquiana
para permitir eleições livres,
em 2005, Sadr passou a combater o governo de Bagdá, visto
como ilegítimo apesar de ser
dominado por xiitas.
As hostilidades entre forças
iraquianas e rebeldes geraram
uma guerra civil em Cidade
Sadr e em Basra (sul do Iraque), que só terminou em meados de 2008, quando o Exército
de Mehdi aceitou um cessar-fogo tido como uma rendição.
A derrota de Sadr, que hoje mora no Irã, e a imposição do Estado de Direito em Cidade Sadr
estão entre as maiores conquistas do premiê Nuri Al Maliki, um xiita nacionalista.
Apesar da onipresença das
forças do governo, Cidade Sadr
ainda é um lugar evitado por
cristãos, sunitas e estrangeiros.
A Folha foi instruída a não levar mochila, máquina fotográfica ou bloco de anotações, evitar ficar muito tempo fora do
carro e só andar na companhia
de moradores locais.
O Exército de Mehdi ficou
invisível. Muitos de seus estimados 10 mil membros estudam ou trabalham, inclusive
para o governo. Mas são os milicianos de Sadr que destruíram na calada da noite todos os
cartazes dos candidatos governistas ao pleito de hoje.
Cidade Sadr pode estar pacificada, mas é um lugar insalubre, onde cachorros sarnentos
perambulam por onipresentes
amontoados de lixo. A energia
elétrica cai a todo instante, somente as avenidas principais
são asfaltadas, e o comércio se
resume a barraquinhas e lojas
precárias.
(SAMY ADGHIRNI)
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