São Paulo, domingo, 07 de março de 2010

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Pacificada, favela xiita em Bagdá ainda é foco de tensão

Calma na superfície, Cidade Sadr ainda tem milicianos fiéis a clérigo radical antigoverno que hoje vive no Irã

Derrota de Moqtada al Sadr e a imposição do Estado de direito em seu antigo bastião estão entre as maiores conquistas do premiê Maliki

DO ENVIADO A BAGDÁ

A cena era impensável há pouco mais de um ano. Um policial uniformizado orienta tranquilamente o trânsito num cruzamento no coração da megafavela Cidade Sadr, bastião xiita que durante anos foi dominado por milicianos hostis a qualquer presença do governo.
A área tornou-se um retrato da situação no Iraque, com seus avanços e desafios, sete anos após a invasão americana.
Cidade Sadr hoje se parece com qualquer outro bairro pobre do Oriente Médio. Há disputadas feiras de legumes ao ar livre, jovens jogando futebol em campos de terra e mulheres cobertas com véu preto da cabeça aos pés.
"Está anoitecendo e crianças ainda brincam nas ruas", aponta o aposentado Ali Darani, ao receber a Folha, sentado no chão de sua casa. "Aqui chegou a haver combates e explosões todos os dias, passávamos dias sem poder sair de casa."
A área chegou a ser a mais violenta de Bagdá após a invasão de 2003. Nesse período, o pesadelo dos EUA e do novo governo iraquiano ordenado por Washington era o clérigo radical Moqtada al Sadr, influente líder comunitário nascido numa família inimiga de Saddam Hussein e próxima dos aiatolás iranianos.
A primeira medida de Sadr após a queda do regime foi mudar o nome do bairro, até então conhecido como Cidade Saddam, apelação que havia sido imposta pelo então ditador sunita como uma provocação contra seus desafetos xiitas que ali moravam.
A queda de Saddam foi um alívio para os xiitas, mas Sadr logo rejeitou a presença americana no Iraque. Jurando nunca se render à ocupação, ele fundou o Exército de Mehdi, um grupo inspirado na crença xiita pela qual o imã Mehdi voltará à Terra para ajudar Jesus a derrotar o demônio.
A exemplo de outros grupos islâmicos, como o palestino Hamas e o libanês Hizbollah, o Exército de Mehdi surgiu com a vocação de mesclar luta armada e assistência social aos seus simpatizantes.
A guerrilha fez com que os EUA nunca pudessem considerar Cidade Sadr uma área ocupada. Apesar da superioridade tecnológica, dezenas de militares americanos morreram em combates no labirinto de ruelas do bairro. O Exército de Mehdi não só resistiu à invasão como lançou ataques aos ocupantes no centro de Bagdá e em santuários xiitas como Najaf e Karbala.
Fortalecido pelas vitórias em combates, o grupo impôs sua própria lei sobre os mais de um milhão de habitantes de Cidade Sadr. Um toque de recolher noturno foi imposto, comerciantes eram extorquidos, e o uso do véu passou a ser obrigatório para as mulheres. A rede de amparo social funcionou pouco, alimentando em silêncio uma crescente insatisfação popular. Imensos cartazes de Sadr foram espalhados pelo bairro, cujos acessos eram controlados pelos milicianos.
Houve várias tentativas de cessar-fogo entre Sadr e os EUA, descumpridas por ambos os lados. Quando os americanos suspenderam a interferência direta na política iraquiana para permitir eleições livres, em 2005, Sadr passou a combater o governo de Bagdá, visto como ilegítimo apesar de ser dominado por xiitas.
As hostilidades entre forças iraquianas e rebeldes geraram uma guerra civil em Cidade Sadr e em Basra (sul do Iraque), que só terminou em meados de 2008, quando o Exército de Mehdi aceitou um cessar-fogo tido como uma rendição. A derrota de Sadr, que hoje mora no Irã, e a imposição do Estado de Direito em Cidade Sadr estão entre as maiores conquistas do premiê Nuri Al Maliki, um xiita nacionalista.
Apesar da onipresença das forças do governo, Cidade Sadr ainda é um lugar evitado por cristãos, sunitas e estrangeiros. A Folha foi instruída a não levar mochila, máquina fotográfica ou bloco de anotações, evitar ficar muito tempo fora do carro e só andar na companhia de moradores locais.
O Exército de Mehdi ficou invisível. Muitos de seus estimados 10 mil membros estudam ou trabalham, inclusive para o governo. Mas são os milicianos de Sadr que destruíram na calada da noite todos os cartazes dos candidatos governistas ao pleito de hoje.
Cidade Sadr pode estar pacificada, mas é um lugar insalubre, onde cachorros sarnentos perambulam por onipresentes amontoados de lixo. A energia elétrica cai a todo instante, somente as avenidas principais são asfaltadas, e o comércio se resume a barraquinhas e lojas precárias. (SAMY ADGHIRNI)


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