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São Paulo, domingo, 07 de setembro de 2003

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ARTIGO

Lições de um naufrágio: 30 anos depois da queda de Allende

ARIEL DORFMAN

Aqui não pode acontecer.
Trinta anos atrás, era isso o que cantávamos em coro nas ruas de Santiago do Chile.
Aqui, sim, é que isso não pode acontecer. Uma ditadura jamais poderá dominar este país, proclamávamos aos quatro ventos da história que estavam prestes a desabar sobre nós; nossa democracia é demasiado sólida, nossas Forças Armadas estão definitivamente comprometidas com a soberania popular, nosso povo é irremediavelmente apaixonado pela liberdade.
Apesar de tudo isso, aconteceu aquilo que não podíamos conceber.
No dia 11 de setembro de 1973, os militares chilenos derrubaram o governo constitucional de Salvador Allende, que tentava, pela primeira vez, construir o socialismo por meios eleitorais e pacíficos. O bombardeio de nosso palácio presidencial naquele dia marcou o início de uma ditadura que duraria 17 anos e cujo legado continua a corroer nosso país, mesmo hoje, depois de termos recuperado nossa democracia.
O golpe de Estado de Pinochet deixou não apenas uma onda de dor e sofrimento, mas também um legado de perguntas que vêm dando voltas na minha cabeça, obsessivamente, nos últimos 30 anos.
Como foi possível que um país com um Parlamento em pleno exercício, um longo histórico de tolerância institucional, uma imprensa independente e irreverente, um Poder Judicial autônomo e, o mais crucial de tudo, Forças Armadas sujeitas ao mandato civil -como foi possível que esse país tão íntegro engendrasse uma das piores tiranias da América Latina, continente que se tornou tristemente célebre por seus regimes assassinos? E uma dúvida ainda mais crucial: por que tantos chilenos, herdeiros de uma democracia vigorosa, permitiram que um Estado levasse a cabo em seu nome as insânias mais malignas -por que eles não protestaram contra o que acontecia nos porões impiedosos da cidade, por que fingiram ignorar as torturas, os massacres e desaparecimentos? E uma dúvida final, ainda mais dolorosa: seria possível que algo semelhante se repetisse nos anos vindouros em nossas democracias contemporâneas aparentemente estáveis, seria possível a erosão da liberdade, que tantos no Chile aceitaram como sendo irremediável, repetir-se perversamente nos Estados Unidos e na Índia, na Espanha e na França, no Brasil e na Alemanha?
Está claro para mim que é intelectualmente perigoso comparar um conflito histórico que vivemos 30 anos atrás num país subdesenvolvido abalado pela Guerra Fria com o que se vive hoje, num mundo muito diverso. As circunstâncias que levaram à perda de nossa democracia no Chile foram tão específicas que seria impossível encontrar hoje uma réplica atual desse cenário. Não obstante, mesmo com todas suas diferenças e distâncias, a tragédia chilena nos envia uma mensagem inescapável à qual precisamos dar ouvidos se quisermos evitar desastres políticos semelhantes no futuro: muitos seres humanos decentes e normais em minha terra permitiram que sua liberdade -e a de seus compatriotas perseguidos- fosse aniquilada em nome da segurança e da luta contra o terror. Foi assim que o general Pinochet e seus sequazes justificaram sua sedição, foi assim que foram construindo apoio popular para a violação maciça dos direitos humanos. Alguns dias depois do golpe, membros da Junta anunciaram ter "descoberto" um plano secreto ao qual deram o nome de plano Zeta e cujo propósito suposto seria exterminar os adversários de Allende. A verdade é que nunca foi apresentada nenhuma prova documentada ou digna de crédito da existência desse plano, tampouco nenhum das centenas de milhares de seguidores do presidente Allende que sofreram ultrajes foi detido ou exilado, nem um único deles foi julgado publicamente por ligação com a tal "conspiração". Mas o medo, uma vez que se começa a solapar uma comunidade, uma vez que nos prestamos a ser manipulados por um governo todo-poderoso, não é fácil de erradicar com razões e argumentos. Quando alguém se sente vulnerável, quando se enxerga como vítima perpétua, quando detecta inimigos em cada vizinho e cada estrangeiro, então nenhum castigo contra seus adversários imaginários será suficientemente duro, nenhuma medida suficientemente extrema, para garantir a tranquilidade própria.
É essa a lição que o Chile nos obriga a aprender, 30 anos após o golpe, especialmente se levarmos em conta as sequelas daquele outro terrível 11 de setembro, aquele dia de 2001 quando a morte novamente caiu do céu e, mais uma vez, milhares de civis inocentes foram aniquilados -desta vez ferindo não um país distante cujas dores e erros a humanidade poderia relegar ao esquecimento, mas a maior potência do planeta. O fato adicional de que o terror de que padeceram os cidadãos dos Estados Unidos não foi uma invenção, como o foi o plano Zeta, torna ainda mais urgente nos perguntarmos como evitar que o medo nos domine, como fez com tantos chilenos que acabaram por apoiar a ditadura.
Não é animador contemplar o que aconteceu nos anos passados desde os desastrosos ataques contra Nova York e o Pentágono. Em nome da sagrada defesa da segurança e como parte de uma guerra contra o terrorismo que é incessantemente monopolizada e aproveitada pelo governo de Bush, muitos dos direitos de que desfrutavam os cidadãos americanos (não é o caso de mencionar os que não são cidadãos) foram restringidos. A situação fora dos Estados Unidos é ainda pior, já que essa eterna batalha contra os fanáticos fundamentalistas serviu de desculpa para limitar os direitos em muitas sociedades do mundo, tanto nas democráticas quanto nas autoritárias. Até mesmo no Afeganistão e no Iraque, dois países "redimidos" pelos Estados Unidos -e agora livres das monstruosas autocracias que os malgovernavam-, há sinais preocupantes de que as forças de ocupação vêm cometendo numerosos abusos dos direitos humanos: os velhos presídios são reabertos, civis inocentes são mortos impunemente, as mulheres vêem seus homens desaparecerem sem deixar rastro, como nos piores tempos da ditadura que ficou para trás.
Não estou sugerindo que os Estados Unidos e seus aliados estejam se transformando num Estado policial gigantesco semelhante àquele que o Chile suportou por tantos anos. Mas esse sofrimento nosso terá sido em vão se hoje, em outras regiões do mundo, não apreciarmos o significado mais profundo da catástrofe que o povo chileno começou a viver 30 anos atrás.
Também nós pensamos, gritamos, lançamos nossa certeza ao planeta: aqui isso não pode acontecer.
Também nós, naquelas ruas tão distantes de Santiago, pensamos que poderíamos fechar os olhos e não enxergar os terrores que nos aguardavam nas intermináveis noites do futuro.


Ariel Dorfman, 61, escritor chileno, é autor de, entre outros, "O Longo Adeus a Pinochet".

Tradução de Clara Allain


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