São Paulo, domingo, 07 de dezembro de 2008

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Povo da Caxemira ignora boicote e vota

Separatistas pregam abstenção em pleito sob controle indiano, mas população, oposta a Nova Déli, almeja melhorias locais

Para estudioso da região, autoritarismo de Nova Déli está na raiz da crise, que deixou 60 mil mortos; votos mostram abertura a diálogo


CLARA FAGUNDES
DA REDAÇÃO

Ignorando o boicote defendido por separatistas, a população da Caxemira indiana está participando maciçamente das eleições locais. No vale onde atua o Lashkar-e-Taiba (exército dos devotos) -organização à qual Nova Déli atribui os atentados de Mumbai- e muitos dos grupos terroristas indianos, a esperança de pequenas melhorias move os eleitores.
Cerca de 60% dos eleitores votaram nas três áreas onde o pleito já ocorreu, segundo dados preliminares das autoridades indianas -o voto é facultativo. As eleições, divididas em sete fases para permitir total ocupação militar das zonas eleitorais, começaram em 17 novembro e vão até o próximo dia 24. Para evitar distúrbios, a apuração só começa no dia 28.
A operação eleitoral assemelha-se a uma guerra, embora a Conferência Hurriyat, aliança separatista, tenha afirmado que não usaria a força para promover o boicote. Protestos estão proibidos e os principais líderes separatistas, em prisão domiciliar preventiva. "Estas eleições são uma farsa para legitimar a ocupação indiana", disse o engenheiro caxemire Shadab Qayoom, em conversa por telefone com a Folha.
Para a maioria dos caxemires, porém, luz elétrica e água encanada são promessas mais sedutoras do que a luta pela improvável independência, que já deixou 60 mil mortos desde o início do levante, no final da década de 80. O voto, entretanto, não significa necessariamente apoio a Nova Déli.

"Liberdade"
"Azadi" é palavra de ordem que ressoa na Caxemira. Traduzido literalmente como "liberdade", o termo tem um significado amplo, diz o acadêmico indiano Sumit Ganguly. "Para algumas pessoas, azadi representa um emprego. Para outras, a possibilidade de se unir ao Paquistão. Azadi pode significar a independência, maior autonomia regional. Depende do contexto e do indivíduo."
"Azadi" é também o termo usado por Islamabad para qualificar a Caxemira paquistanesa -que, ao contrário da indiana, não faz parte da federação. "Confundir o desejo de liberdade com a intenção de unir-se ao Estado paquistanês é um erro que tanto paquistaneses como indianos cometeram no passado", disse o analista à Folha.
Nascente de rios importantes e estopim de 2 das 3 guerras travadas entre Índia e Paquistão, a Caxemira é uma das zonas mais militarizadas do planeta. A região de maioria muçulmana, que no passado foi um reino independente e uniu-se à Índia após tentativa de anexação paquistanesa, é hoje repartida entre Nova Déli (que controla cerca de 60% de seu território), Islamabad (com 30%) e Pequim (10%).
Na porção indiana (o Estado de Jammu e Caxemira), mais de 500 mil soldados estão prontos para reagir a qualquer tentativa de se separar pelas armas. Há um militar para cada 20 civis -na fronteira, o número chega a 1 para 4. "Somos um país ocupado", diz Qayoom.
"O máximo que os caxemires podem esperar é mais autonomia", afirma Ganguly, lembrando que a proposta de um plebiscito local sobre a independência, aprovada por resolução da ONU em 1949, não tem apoio de nenhum partido de alcance nacional. Quase um terço dos 10 milhões de habitantes de Jammu e Caxemira é hindu, e muitos acreditam que a independência provocaria uma limpeza étnica.
"Viajei muito pela região, escrevi três livros sobre a Caxemira e mais artigos do que sou capaz de lembrar... Há pouquíssimas coisas que posso afirmar, com certeza, que não acontecerão enquanto eu viver. A independência da Caxemira é uma delas", diz Ganguly.
Também cético, Nayan Chanda, especialista em globalização da Universidade Yale, nos EUA, diz que o contexto internacional é desfavorável à independência caxemire. "A região se tornou estratégica para o combate ao terrorismo, que é uma preocupação global."

Raízes do Conflito
Para Sumit Ganguly, o autoritarismo de Nova Déli explica a revolta caxemire, convertida em terrorismo pela infiltração paquistanesa.
"O governo federal e, sobretudo, o premiê Rajiv Gandhi [1984-1989], tem responsabilidade pela crise original. Nova Déli tentou impor suas escolhas na Caxemira. Isso gerou uma grande insatisfação, e os jovens optaram por protestos extra-parlamentares: paralisações, protestos, violência ocasional", diz o indiano. "Com a vinda de grupos treinados no Paquistão, o movimento autonomista se modificou, e os caxemires ficaram totalmente marginalizados", diz Ganguly.
O cientista político Rasul Bakhsh Rais, da Universidade de Administração de Lahore (Paquistão), conta que muitos grupos que lutam contra o domínio indiano na região foram treinados pelo Exército do país para combater os soviéticos no Afeganistão.
"O Exército treinou o Lashkar-e-Taiba [no final dos anos 70 e 80], com apoio inclusive da CIA. Mas isso não significa que o Paquistão tenha algum controle sobre esse grupo ou os demais que atuam na Caxemira", diz Rais.


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