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Povo da Caxemira ignora boicote e vota
Separatistas pregam abstenção em pleito sob controle indiano, mas população, oposta a Nova Déli, almeja melhorias locais
Para estudioso da região, autoritarismo de Nova Déli está na raiz da crise, que deixou 60 mil mortos; votos mostram abertura a diálogo
CLARA FAGUNDES
DA REDAÇÃO
Ignorando o boicote defendido por separatistas, a população da Caxemira indiana está
participando maciçamente das
eleições locais. No vale onde
atua o Lashkar-e-Taiba (exército dos devotos) -organização à
qual Nova Déli atribui os atentados de Mumbai- e muitos
dos grupos terroristas indianos, a esperança de pequenas
melhorias move os eleitores.
Cerca de 60% dos eleitores
votaram nas três áreas onde o
pleito já ocorreu, segundo dados preliminares das autoridades indianas -o voto é facultativo. As eleições, divididas em
sete fases para permitir total
ocupação militar das zonas
eleitorais, começaram em 17
novembro e vão até o próximo
dia 24. Para evitar distúrbios, a
apuração só começa no dia 28.
A operação eleitoral assemelha-se a uma guerra, embora a
Conferência Hurriyat, aliança
separatista, tenha afirmado
que não usaria a força para promover o boicote. Protestos estão proibidos e os principais líderes separatistas, em prisão
domiciliar preventiva. "Estas
eleições são uma farsa para legitimar a ocupação indiana",
disse o engenheiro caxemire
Shadab Qayoom, em conversa
por telefone com a Folha.
Para a maioria dos caxemires, porém, luz elétrica e água
encanada são promessas mais
sedutoras do que a luta pela
improvável independência,
que já deixou 60 mil mortos
desde o início do levante, no final da década de 80. O voto, entretanto, não significa necessariamente apoio a Nova Déli.
"Liberdade"
"Azadi" é palavra de ordem
que ressoa na Caxemira. Traduzido literalmente como "liberdade", o termo tem um significado amplo, diz o acadêmico indiano Sumit Ganguly. "Para algumas pessoas, azadi representa um emprego. Para outras, a possibilidade de se unir
ao Paquistão. Azadi pode significar a independência, maior
autonomia regional. Depende
do contexto e do indivíduo."
"Azadi" é também o termo
usado por Islamabad para qualificar a Caxemira paquistanesa
-que, ao contrário da indiana,
não faz parte da federação.
"Confundir o desejo de liberdade com a intenção de unir-se ao
Estado paquistanês é um erro
que tanto paquistaneses como
indianos cometeram no passado", disse o analista à Folha.
Nascente de rios importantes e estopim de 2 das 3 guerras
travadas entre Índia e Paquistão, a Caxemira é uma das zonas mais militarizadas do planeta. A região de maioria muçulmana, que no passado foi
um reino independente e uniu-se à Índia após tentativa de
anexação paquistanesa, é hoje
repartida entre Nova Déli (que
controla cerca de 60% de seu
território), Islamabad (com
30%) e Pequim (10%).
Na porção indiana (o Estado
de Jammu e Caxemira), mais
de 500 mil soldados estão
prontos para reagir a qualquer
tentativa de se separar pelas armas. Há um militar para cada
20 civis -na fronteira, o número chega a 1 para 4. "Somos um
país ocupado", diz Qayoom.
"O máximo que os caxemires
podem esperar é mais autonomia", afirma Ganguly, lembrando que a proposta de um
plebiscito local sobre a independência, aprovada por resolução da ONU em 1949, não
tem apoio de nenhum partido
de alcance nacional. Quase um
terço dos 10 milhões de habitantes de Jammu e Caxemira é
hindu, e muitos acreditam que
a independência provocaria
uma limpeza étnica.
"Viajei muito pela região, escrevi três livros sobre a Caxemira e mais artigos do que sou
capaz de lembrar... Há pouquíssimas coisas que posso
afirmar, com certeza, que não
acontecerão enquanto eu viver.
A independência da Caxemira
é uma delas", diz Ganguly.
Também cético, Nayan
Chanda, especialista em globalização da Universidade Yale,
nos EUA, diz que o contexto internacional é desfavorável à independência caxemire. "A região se tornou estratégica para
o combate ao terrorismo, que é
uma preocupação global."
Raízes do Conflito
Para Sumit Ganguly, o autoritarismo de Nova Déli explica
a revolta caxemire, convertida
em terrorismo pela infiltração
paquistanesa.
"O governo federal e, sobretudo, o premiê Rajiv Gandhi
[1984-1989], tem responsabilidade pela crise original. Nova
Déli tentou impor suas escolhas na Caxemira. Isso gerou
uma grande insatisfação, e os
jovens optaram por protestos
extra-parlamentares: paralisações, protestos, violência ocasional", diz o indiano. "Com a
vinda de grupos treinados no
Paquistão, o movimento autonomista se modificou, e os caxemires ficaram totalmente
marginalizados", diz Ganguly.
O cientista político Rasul
Bakhsh Rais, da Universidade
de Administração de Lahore
(Paquistão), conta que muitos
grupos que lutam contra o domínio indiano na região foram
treinados pelo Exército do país
para combater os soviéticos no
Afeganistão.
"O Exército treinou o Lashkar-e-Taiba [no final dos anos
70 e 80], com apoio inclusive da
CIA. Mas isso não significa que
o Paquistão tenha algum controle sobre esse grupo ou os demais que atuam na Caxemira",
diz Rais.
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