São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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ÁSIA

Transferência de tecnologia para o Irã, a Líbia e a Coréia do Norte pode abrir caminho para investigação de tráfico internacional

Caso paquistanês expõe necessidade de controle nuclear

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

O perigoso imbróglio nuclear em que se envolveu o Paquistão é um bom pretexto para que governos e a comunidade científica investiguem (e desmantelem) a rede internacional de traficantes de componentes que viabiliza o uso militar da energia atômica.
É o que disse à Folha Joseph Cirincione, diretor do projeto de não-proliferação do Carnegie Endowment for International Peace (EUA), um centro de estudos sobre causas e riscos de conflitos.
Na última quarta-feira, o pai da bomba atômica do Paquistão, o físico Abdul Qadeer Khan, fez um pronunciamento, em Islamabad, em que confessou ter transferido tecnologia nuclear para o Irã, a Coréia do Norte e a Líbia.
No dia seguinte, quem foi à televisão foi o ditador do Paquistão, Pervez Musharraf. Disse que perdoava Khan e procurou dar o episódio por encerrado.
"É preciso que haja uma investigação irrestrita sobre o que foi vendido e para quem. Precisamos saber muito mais sobre a rede internacional do dr. Khan", disse Cirincione. Ele deu particular importância ao fato de ser preciso conhecer não apenas os destinatários de projetos e equipamentos mas também o circuito de intermediários do tráfico.
O episódio é absolutamente inédito na história de quase 60 anos do uso militar da energia atômica. Ele expõe pela primeira vez aquilo que o jornal britânico "Daily Telegraph" chamou, anteontem, de "supermercado" clandestino de projetos, enriquecimento de combustível e equipamentos.
O Paquistão recebeu auxílio da China, nos anos 80, para produzir sua bomba. No jogo regional de alianças, os dois países contrabalançavam o apóio da Rússia à Índia no conflito pela região da Caxemira. A Índia explodiu seu primeiro artefato nuclear em 1974.
Em circunstâncias normais, Khan estaria arriscando a vida no desfecho de um julgamento por alta traição. Mas Musharraf não tem como julgar alguém que, por força de três guerras contra a Índia, virou um herói nacional.
Os EUA, empenhados justamente em impedir que Irã, Coréia do Norte e Líbia tenham acesso à bomba atômica, procurariam, também em circunstâncias normais, pressionar o Paquistão a obter de Khan e seus cúmplices os detalhes sobre o que ele vendeu.
Mas uma pressão pública enfraqueceria Musharraf ou apressaria sua queda ou eliminação física. Ele foi, recentemente, alvo de dois atentados. Poderia ser substituído por extremistas islâmicos, que se tornariam guardiães do arsenal nuclear paquistanês, podendo dividi-lo com terroristas. O país detonou suas primeiras seis bombas entre 28 e 30 de maio de 1998.
É provável que os EUA tentem, de um modo bastante discreto, arrancar as informações de Musharraf. Mas o governo americano está de mãos atadas.
Se fizesse barulho, queimaria também um aliado na caça a Osama bin Laden, provavelmente refugiado no Paquistão, e comprometeria mais ainda a difícil tarefa de desmantelar a rede Al Qaeda.
Essa relativa imobilidade ditada por razões de Estado abre espaço para a ação de especialistas que participam de grupos de estudos ou pressão. O regime paquistanês entrou, nesta semana, na mira de uma espécie de mutirão internacional de cientistas e ONGs.
Alertas e informações detalhadas têm sido divulgados pela FAS (Federação dos Cientistas Americanos), pela UCS (União de Cientistas Engajados), pelos ambientalistas do Friends of the Earth (Amigos da Terra), todos nos EUA, ou pelo Instituto de Estudos de Defesa e Estratégia, de Cingapura, ou pelo Instituto de Estudos de Defesa e Análises, da Índia.
Seu poder de intervenção é limitado. Mas eles podem ao menos cobrar dos governos, de forma tecnicamente correta, as medidas tomadas para impedir que armas atômicas entrem no jogo de dissuasão de conflitos regionais ou se tornem instrumentos de pressão de fundamentalistas islâmicos.



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