São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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ARTIGO

A hipocrisia americana é posta a nu

Win McNamee - 1º.fev.2004/Reuters
Janet Jackson tenta esconder seio exposto durante apresentação no Super Bowl, em Houston


MARVIN KALB
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"

Houve época em que a Columbia Broadcasting System (CBS) era a mais admirada das redes americanas de rádio e TV. Durante décadas ela produziu programas de jornalismo e de entretenimento de primeira qualidade e manteve uma equipe de correspondentes experientes.
Infelizmente, porém, muita coisa mudou -não apenas na CBS, mas em todo o universo das comunicações modernas. Nos últimos anos, os padrões éticos e profissionais decaíram seriamente em razão da busca por audiência e lucros, e o bom gosto foi deixado de lado.
No fim de semana passado, por exemplo, a CBS transmitiu o Super Bowl, uma partida de campeonato, com audiência enorme, entre os dois melhores times de futebol americano. Esse ""evento familiar", como era conhecido no passado, costumava ser uma oportunidade rara para adultos e crianças se sentarem juntos e assistirem ao mesmo programa de televisão, sem preocupações com violência ou conteúdo sexual. Dessa vez, porém, não seria assim. Mais uma vez a CBS comprovou que não há limites em sua busca pelo sensacionalismo que, hoje em dia, tão facilmente se traduz em notoriedade e dinheiro.
O programa do Super Bowl atraiu uma audiência gigante: de acordo com as medições feitas pelo instituto Nielsen, 89,9 milhões de pessoas assistiram à partida, 143,6 milhões assistiram a pelo menos uma parte dela, e a estimativa é que um sexto dos espectadores fossem crianças na faixa dos 2 aos 11 anos de idade.
E o que esses espectadores viram? Uma partida esportiva emocionante, sim, mas também uma seqüência de comerciais violentos e ofensivos (um deles, um anúncio de cerveja que incluía um cavalo com flatulência, outro um anúncio de um produto chamado Cialis que promete aos homens que sofrem de ""disfunção erétil" até 36 horas de potência contínua), ao custo de US$ 2,9 milhões cada spot de 30 segundos.
Eles também viram um show no meio tempo com dançarinos usando roupas sumárias e cantando canções sexualmente explícitas, um cantor pop que agarrava a própria virilha a todo momento e uma cantora famosa que deixou seu seio direito, com o mamilo mal coberto, sair do corpete que usava. Ops, foi engano, é claro, disse ela mais tarde, pedindo desculpas pelo acontecido.
Imediatamente, todos os executivos da liga de futebol americano, da CBS e da MTV (que produziu o show do meio tempo) expressaram surpresa, decepção ou ultraje. Como os personagens no clássico do cinema ""Casablanca", que se diziam chocados ao descobrir que os jogos de azar eram permitidos no bar de Rick, eles se disseram chocados ao saber que uma ""indecência" podia ser tão descaradamente exibida na televisão americana, durante o Super Bowl, enquanto havia crianças assistindo. Onde foram parar os padrões da televisão, perguntaram? O que está acontecendo com a América? Poucas vezes a hipocrisia foi tão evidente por trás de cada expressão de suposto desagrado.
Naturalmente, numa capital já repleta de inquéritos sobre praticamente tudo, foi lançado mais um -desta vez da Comissão Federal de Comunicações (FCC), sobre o incidente descrito pelo ""New York Times" como ""um vislumbre de pele".
Conservadores no Congresso se indagaram se serão necessárias novas leis para impor restrições mais rígidas à ""indecência exagerada" na TV.
Eles só precisariam ter passado os olhos pela legislação antiga para saber que estariam embarcando num esforço vão e provavelmente impossível. O público acessa a televisão por três vias: pelo ar, que é gratuito, e por cabo e satélite, que não o são. De acordo com as leis federais em vigor, o governo não tem autoridade alguma para impedir a veiculação de profanidade, nudez ou conteúdos sexuais na televisão por satélite ou por cabo, que hoje está presente em 86% dos lares americanos e, pela primeira vez, é vista por mais de 50% da população. É apenas com relação à televisão aberta que ele possui esse poder.
Mesmo com relação a ela, porém, ele raramente tenta exercer esse poder, já que sabe, em razão dos precedentes legais, que os tribunais tendem a proteger o direito que a Primeira Emenda constitucional garante à televisão de exibir o que quiser.
Além disso, seria difícil controlar a tendência recente em direção aos programas de pornografia leve na televisão, porque a maior parte das redes, dos produtores e dos talentos da televisão pertence a conglomerados de mídia que buscam maximizar seus lucros.
É difícil escapar do domínio da Viacom, dos desejos da General Electric ou do viés da News Corporation.
Nos círculos mais elegantes isso é conhecido como sinergia, mas é algo que corre o risco de sufocar a liberdade de expressão nas sociedades livres.
O senador republicano John McCain planeja, para a próxima semana, audiências no Congresso sobre a indecência na televisão. Boa sorte, senador!

Ex-correspondente das redes CBS e NBC, Marvin Kalb é escritor, palestrante e membro sênior do Centro Shorenstein de Imprensa, Política e Política Pública da Universidade Harvard.

Tradução de Clara Allain


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