São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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ARTIGO

A BBC e o problema da verdade em jornalismo

JOHN LLOYD
DO ""FINANCIAL TIMES"

Pode o jornalismo dizer a verdade? Essa sempre foi uma de suas metas declaradas. Há muitas outras que ocupam uma parte maior do tempo da mídia, entre elas o entretenimento, o lucro e a criação de celebridades. Mas dizer a verdade deveria ser o princípio básico que norteia o jornalismo.
É possível acreditar na verdade jornalística depois de a BBC, um serviço de rádio e televisão visto como o mais objetivo do mundo, ter sido acusada, na semana passada, de distorcer fatos? Será que a emissora, condenada no relatório Hutton, falhou por não ter dito a verdade? Para jornalistas de todo o mundo, a resposta a ambas essas perguntas é ""sim".
A verdade é um pico jornalístico que poucos de nós escalamos com freqüência. Poderíamos, é claro, nos esforçar mais para isso.
Quando falamos da verdade, às vezes apelamos para o ensaio de John Stuart Mill ""Sobre a Liberdade", segundo o qual do choque de opiniões surgirá a verdade. Mill não viveu para ver como a televisão encara essa idéia. No choque de opiniões que se trava nos estúdios de democracias ricas, políticos e jornalistas tentam falar mais alto. Suas opiniões se chocam, mas raramente o que emerge é a verdade. O público é convidado a avaliar não a questão que está sendo discutida, mas a atuação dos participantes.
O segundo critério pelo qual o jornalismo se pauta é a investigação, e, para isso, o texto sagrado é ""Todos os Homens do Presidente", o relato feito por Bob Woodward e Carl Bernstein sobre como trouxeram à tona a corrupção no coração da Presidência de Richard Nixon. A investigação resultou em medidas judiciais ou de reparação e levou a reformas. Mas histórias como essa podem ser sedutoras. São boas quando se segue o exemplo de Woodward e Bernstein, que se deram a trabalho enorme. São más -ou, no caso da BBC, desastrosas- quando uma parte pequena e possivelmente questionável de uma narrativa maior é interpretada erroneamente como revelação de podridão de um sistema inteiro.
Há um terceiro tipo de verdade que pode ser buscada por meio da mídia: pela explicação de contextos, utilizando as ferramentas racionais da investigação. Numa base diária, esta é tão essencial quanto a discussão e a investigação para manter os cidadãos bem informados. Essa deve ser a razão mais importante para manter uma emissora como a BBC.
O choque de opiniões é necessário para subsidiar a opção democrática, e o processo de revirar pedras para trazer à tona o que está debaixo delas também. A investigação e exposição constituem a terceira base necessária para um bom equilíbrio. No entanto essa terceira forma de dizer a verdade vem sendo vista menos hoje do que era no passado. A paixão por explicar é sentida por apenas alguns poucos órgãos de imprensa. As explicações praticamente não são oferecidas pelos canais de televisão comerciais. A televisão pública é o último reduto do jornalismo objetivo, mas está em perigo cada vez maior.
A BBC, que no passado liderou o mundo na área da TV explicativa, vem se afastando dessa direção, concentrando-se, em lugar disse, no choque de opiniões em estúdio. Com freqüência cada vez maior ela vem buscando revirar pedras -ou seja, sair em busca de revelações espantosas, no caso em pauta o contexto dentro do qual o repórter Andrew Gilligan fez sua acusação, hoje notória, de que o governo mentiu com conhecimento de causa quando redigiu seu dossiê sobre o Iraque.
Gilligan tinha em mãos o começo de uma matéria: um fio que, se fosse puxado com habilidade, poderia ter revelado muito sobre o processo decisório britânico no período que antecedeu a guerra no Iraque. Mas esse começo não foi explicado por meio do que, mais tarde, descobrimos ser um relato impreciso da idéia que uma fonte parcialmente bem informada (David Kelly) fazia sobre o que pode ter acontecido. Esse começo só seria compreensível se fosse acompanhado de uma explicação completa do contexto. Isso levaria tempo para preparar, mas atuaria como uma espécie de critério pelo qual o público poderia se pautar.
Um jornalismo desse tipo é o oposto do jornalismo ""pró-governo". Ele assume a responsabilidade de tentar contar uma verdade inteira. Significa ganhar uma compreensão independente do mundo. A BBC é uma das poucas emissoras do mundo capazes para esse trabalho. Ao fazê-lo, ela às vezes concordará com a visão das autoridades e, em outros momentos, exporá o que é inconveniente a elas. Se não o fizer, a BBC estará sempre em falta com o público, porque não estará fazendo o que os cidadãos que a financiam têm o direito de esperar.
Os líderes da BBC optaram pela saída romana e se jogaram sobre suas próprias espadas. Essa saída pode agora estar aberta a um jornalismo que lance luz consistente sobre nosso mundo. Ao tentar chegar a isso, a BBC poderia voltar a ser um modelo.


John Lloyd edita a ""FT Magazine".

Tradução de Clara Allain


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