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Advogada pede respeito à lei em Guantánamo
Para americana descendente de afegãos que trabalhou na prisão em base militar dos EUA, maioria dos detentos é inocente
Uma das poucas capazes de falar com os presos em sua língua, Mahvish Khan diz que tribunais imparciais devem julgar detentos
SYLVIA COLOMBO
DA REPORTAGEM LOCAL
"Havia alguns homens muito
maus na baía de Guantánamo",
conta a jovem advogada norte-americana de ascendência afegã Mahvish Rukhsana Khan em
seu "Diário de Guantánamo".
E lista os exemplos de Khaled Sheik Mohammad, considerado o cérebro dos ataques
de 11 de Setembro, e Ramzi Binalshibh, colega de quarto do líder do sequestro dos aviões na
ocasião, Mohammad Atta.
Porém, os primeiros detentos com quem teve contato, ao
ser aceita como advogada num
grupo que representava prisioneiros do campo americano em
Cuba, não pareciam uma ameaça aos EUA ou ao mundo.
Entre as histórias que recolheu, estão a do pediatra que
trabalhara na reconstrução política do Afeganistão com o regime de Hamid Karzai e a de
um idoso que mal conseguia se
movimentar, mas, ainda assim,
era mantido algemado ao chão.
Os pais de Khan, 30, são afegãos residentes nos EUA, e ela
foi criada de modo conservador. Apesar de ter nascido em
Michigan e cursado direito na
Universidade de Miami, seguia
as tradições que regram a vida
das mulheres no país dos pais.
Idealista, interessou-se em
ver de perto Guantánamo para
investigar até que ponto o governo de seu país desrespeitava
os direitos humanos ao manter
ali presos sem julgamento.
Juntou-se a um grupo de advogados e iniciou uma série de
visitas à prisão. Entre eles, destacava-se por ser praticamente
a única pessoa que podia falar
com os detentos afegãos, pois
dominava a língua pashtu.
Percebeu que um dos principais problemas do lugar era
que, justamente, ninguém se
entendia. Nem oficiais e prisioneiros, tampouco estes e seus
advogados. Sua atuação, assim,
foi muito importante em diversos processos. Agora, ela conta
algumas de suas histórias em livro recém-lançado no Brasil
pela Larousse.
Leia abaixo trechos da entrevista que ela concedeu à Folha.
FOLHA - Além da vigilância e da
desconfiança por parte do Exército
dos EUA, os advogados americanos
que trabalham em Guantánamo
ainda têm de fazer com que os detentos confiem neles. O que há de
gratificante nesse duplo esforço?
MAHVISH RUKHSANA KHAN - É natural que os presos, inicialmente, não confiem em alguém que
é pago para defendê-los pelo
mesmo governo que os mantêm ali. Muitos estão há mais
de sete anos sendo interrogados e torturados por indivíduos
do mesmo país de onde nós viemos. Há os que inclusive creem
que seus advogados são interrogadores disfarçados.
O esforço vale a pena. Não só
porque nós, advogados, sejamos, talvez, a única face positiva da América e do Ocidente
que esses homens vão encontrar em suas vidas. Mas também porque podemos convencê-los de que nosso trabalho é a
única chance que têm de fazer
suas histórias serem ouvidas
fora do campo e de questionar
sua detenção ilegal.
FOLHA - Por que você se interessou
em trabalhar com Guantánamo?
KHAN - Quando estudava direito, me chamou a atenção o processo por meio do qual Washington desviara tecnicamente
de princípios constitucionais
para criar o campo de detenção.
Meu senso de indignação com
relação ao fato de que ali pessoas eram presas sem serem
formalmente acusadas foi crescendo. Percebi que era algo criminoso e medieval.
A cadeia foi construída em
Cuba para excluí-la do território em que os fundamentos da
América vigoram. Tornou-se
um buraco negro.
Eu não sabia se os homens ali
eram bons ou maus, mas tinha
a convicção de que não deveriam ser tratados fora da lei,
com desrespeito aos direitos
humanos. Apenas um julgamento imparcial pode separar
uns dos outros.
FOLHA - Ter ascendência afegã e
falar pashtu a fez mais sensível que
os ocidentais ao julgar a situação?
Ou a proximidade cultural pode ter
comprometido seu senso crítico?
KHAN - Minha percepção sobre
a inocência ou a culpa dos detentos não foi influenciada por
minha origem. Fui a Guantánamo esperando encontrar terroristas. Na primeira viagem, em
2006, estava assustada. Achava
que veria fabricantes de bombas, membros da Al Qaeda e do
Taleban. Porém, o primeiro homem com quem falei era um
pediatra que estava tão nervoso
quanto eu. Era Ali Shah Mousovi, 43. Os militares alegavam
que ele era do Taleban, embora
houvesse provas de que ele tinha trabalhado para a ONU na
instalação do regime democrático de Hamid Karzai.
Mousovi era xiita (minoria
muçulmana perseguida pelo
Taleban) e ainda assim era acusado de ter ligações com o Taleban. Sua mulher era uma economista e ambos tinham três
crianças pequenas que haviam
levado para o Irã quando fugiram justamente do regime
opressor do Taleban. Depois de
três anos em Guantánamo, ele
foi solto sem jamais receber
uma condenação.
Minha proximidade cultural
e linguística me permitiu interagir de modo mais pessoal
com os prisioneiros. Mas, assim como os outros advogados,
meu interesse não era descobrir quem era culpado ou inocente. Só pedíamos que todos
os prisioneiros fossem levados
a julgamento. Nenhum dos
presos que encontrei em Guantánamo foi formalmente acusado. A prisão tinha cerca de 770
em seu momento mais ativo
[hoje são 245]. Deles, apenas 20
foram realmente condenados.
FOLHA - Por que você considera
que provavelmente a maioria dos
presos de Guantánamo é inocente?
KHAN - A questão das recompensas oferecidas pelos militares americanos é um fato que
não pode ser subestimado. Foram jogados sobre o Afeganistão milhares de anúncios que
ofereciam US$ 25 mil para
quem indicasse alguém que tivesse relação com a Al Qaeda
ou o Taleban. É uma quantia
assombrosa para a economia
de uma família afegã média.
Criou-se logo um mercado
negro de denúncias, agravado
pelo fato de que se trata de um
país que tem um histórico de
lutas tribais antigo. Quase nunca o Exército americano investigava as acusações. Só 5% dos
presos em Guantánamo resultam de investigações dos serviços de inteligência dos EUA.
Essas informações me levaram a concluir que grande parte dos presos lá é inocente.
FOLHA - Que conselho você daria a
Barack Obama para fechar a prisão?
KHAN - Eu diria que ele deve
seguir a lei, só isso. Julgar e
condenar os culpados e libertar
os inocentes. Os condenados
devem ser julgados por tribunais imparciais, e não por militares. E não se deve temer realizar esses processos em solo
americano.
FOLHA - Se todos os prisioneiros de
Guantánamo forem soltos hoje,
sem julgamento, qual a chance imediata de novos atentados?
KHAN - Um pequeno número
responde a acusações de atividades criminosas. Sem julgamento, os bons estão injustamente detidos, e há risco de se
libertarem criminosos.
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