São Paulo, quarta-feira, 08 de maio de 2002

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ARTIGO

A maioria dos eleitores é isenta de ideologia. Mais de 50% na UE se dizem nem de esquerda nem de direita

Esquerda perde ao não se modernizar


O erro político dos governos à esquerda do centro tem sido sua incapacidade de promover modernização


ANTHONY GIDDENS
ESPECIAL PARA O "LE MONDE"

A vitória certa de Jacques Chirac na eleição presidencial francesa é o capítulo mais recente na volta ao poder da direita na Europa. É a primeira vez que a direita se opõe à direita numa disputa eleitoral tão crucial quanto esta, mas é muito possível que Chirac tivesse voltado a ser presidente mesmo que seu adversário tivesse sido Jospin. A geografia política da Europa está mudando. Menos de três anos atrás, governos situados à esquerda do centro estavam no poder em 11 dos 15 Estados-membros da União Européia. Dependendo de o que acontecer nas eleições parlamentares francesas, em junho, e nas eleições alemãs de setembro, esse número pode cair para apenas cinco ou seis. Ademais, assistimos não apenas ao retorno da direita moderada, mas ao ressurgimento da extrema direita, simbolizada pelo apoio obtido por Le Pen.
Como devemos interpretar essas mudanças? Estaremos assistindo a uma transição ideológica comparável à que marcou o final dos anos 70, quando o conservadorismo do livre mercado ganhou ascendência tão grande?
Minha resposta a essa pergunta seria "não". Para compreender por que a direita voltou ao poder em uma série de países da UE, precisamos entender por que razão os partidos situados à esquerda do centro passaram a integrar a maioria a partir de meados da década de 90. Não foi porque o eleitorado estivesse se deslocando para a esquerda. Pesquisas conduzidas naquela época não revelam nenhum deslocamento desse tipo. Os partidos social-democratas se saíram bem por uma série de razões. Eles reavaliaram suas posições políticas de modo a agradar a um eleitorado mais amplo, abandonando parte da bagagem ideológica que os mantinham fora do poder até então. O trabalhismo tornou-se o novo trabalhismo, os social-democratas alemães falaram do "novo meio", e assim por diante. Mas houve outras razões também, mais contingentes. No Reino Unido e na Alemanha, os conservadores já estavam no poder havia quase 20 anos; as pessoas estavam fartas deles e queriam ver rostos novos. Na Itália, a direita se dividiu, enquanto a esquerda, na forma da coalizão Oliveira, conseguiu passar por cima de suas diferenças. Muito disso também se aplicava à França, onde conflitos e disputas na direita afastaram os eleitores, permitindo que a esquerda, sob a liderança de Jospin, conquistasse uma vitória inesperada. Se existe uma regra de ouro na política é que, com união, ganha-se; com divisão, perde-se.
O retorno da direita, hoje, é em parte uma imagem espelhada das vitórias anteriores da esquerda. Na Espanha, o líder de centro-direita José Maria Aznar se encontra no poder principalmente porque os eleitores ficaram desiludidos após um longo período de governo pelos socialistas, cuja popularidade foi prejudicada por uma sucessão de escândalos de corrupção. A esquerda italiana foi incapaz de conter suas divergências enquanto estava no governo, tornando-se fragmentada e sem liderança, enquanto a direita, sob Berlusconi, conseguiu demonstrar unidade. Na Dinamarca, os social-democratas caíram em parte por terem perdido o referendo sobre a entrada do país no regime do euro, que tinham apoiado com força total. Nos EUA, Bush venceu porque a candidatura de Ralph Nader retirou votos de Al Gore.
É claro que a queda dos governos de centro-esquerda também é consequência de falhas políticas. E é nesta área que precisam ser formuladas e respondidas as perguntas mais cruciais. Muitos críticos andam argumentando que os governos à esquerda do centro estão em baixa porque os social-democratas se afastaram demais do centro. A Terceira Via estaria fadada ao fracasso. O caminho de volta, para a esquerda, estaria no retorno às políticas rejeitadas pelos modernizadores: impostos altos, maior intervenção do Estado na indústria e ênfase maior na redistribuição.
No entanto esse ponto de vista não resiste à menor análise. Hoje em dia a maioria dos eleitores é isenta de ideologia. Bem mais de 50% dos eleitores nos países da UE (e nos Estados Unidos) se definem como nem de esquerda nem de direita. Os partidos que se ativeram a uma agenda de esquerda tradicional recebem apenas uma pequena minoria dos votos -normalmente, menos de 10% do total-, e essa porcentagem vem caindo.
Na realidade, os erros políticos dos governos situados à esquerda do centro têm sido de natureza oposta: sua incapacidade de promover modernização suficiente.
Há dois fatores cruciais que figuram entre as prioridades do pensamento ligado à Terceira Via. O primeiro é a reforma dos mercados de mão-de-obra e dos sistemas de proteção social, de modo a enfatizar a geração de empregos. O segundo é a necessidade de a esquerda tratar de questões tradicionalmente dominadas pela direita, tais como a criminalidade e a imigração. Os social-democratas em vários países-chave da UE têm resistido ou se mostrado politicamente incapazes de fazer essas adaptações. Com isso, acabaram favorecendo a direita. A dificuldade básica na França, Alemanha e Itália é o desemprego de longo prazo. Embora o desemprego tenha diminuído por algum tempo, especialmente na França, o centro-esquerda nesses países não promoveu as reformas necessárias nos mercados de mão-de-obra. A proporção da força de trabalho do Reino Unido que está empregada é hoje de cerca de 76%. Na França e na Alemanha, é de cerca de 65%, e, na Itália, está na casa dos 50%. Na França, o desemprego é especialmente alto entre os jovens, uma parcela substancial dos quais apoiou Le Pen.
A muito comentada intenção de Tony Blair de ser intransigente com relação ao crime e às causas do crime foi uma das principais razões da ascensão do novo trabalhismo britânico. Ele reconhece que os temores da população com relação à criminalidade são reais e precisam encontrar resposta. A ênfase são preocupações que, anteriormente, eram domínio exclusivo da direita. Os social-democratas de outros países precisam fazer o mesmo se quiseram manter ou recuperar o apoio público amplo. A mesma coisa se aplica à questão da imigração, possivelmente a mais determinante de todas para os partidos de esquerda ou centro. Não adianta apenas proclamar que os países da UE precisam dos imigrantes (embora isso seja verdade). É preciso desenvolver políticas que sejam "intransigentes com a imigração, mas também com as causas da hostilidade com relação aos imigrantes".
A retomada da polarização esquerda-direita da política representa uma ameaça clara à estabilidade política. Mas a causa da modernização da esquerda está longe de perdida. Ela continua a representar o único caminho viável de avanço para os social-democratas europeus. A transformação ideológica contínua terá de ser unida a uma reflexão tática eficaz. Se suas divisões forem menos agudas do que as da direita, a esquerda pode continuar a vencer.

O sociólogo Anthony Giddens é um dos idealizadores da política da Terceira Via do governo britânico e autor de "O Estado-Nação e a Violência" (Edusp)

Tradução de Clara Allain


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