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São Paulo, domingo, 08 de junho de 2003

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MÍDIA

Para o ex-repórter do "Times" e autor de biografia do jornal, confia-se demais em informações dadas por fontes não identificadas

Talese liga caso "NYT" a pobreza jornalística



A reportagem não é mais cara a cara. Quando eu era repórter, queria ver o rosto das pessoas

ROBERTO DIAS
DE NOVA YORK

Autor do mais famoso livro sobre a história do jornal "The New York Times", Gay Talese vê dois grandes problemas a partir da crise atual.
Um vale para toda a profissão. Em sua opinião, a história recente do diário mostra que os jornalistas deveriam parar de divulgar informações sem identificar a fonte -o chamado "off the records".
Outro é específico do diário nova-iorquino, que ele classifica como espelho do que acontece com o governo americano. Na sua comparação, Jayson Blair, o repórter-inventor, faz o papel que coube aos terroristas dos atentados de 11 de setembro de 2001.
As semelhanças emergiriam até no episódio da última quinta, quando os dois principais editores do jornal pediram demissão.
"A troca de editores é como no governo americano. E o país segue em frente", disse Talese, 71, em entrevista na sexta-feira.
Ele trabalhou no diário de 1955 a 1965. Quatro anos depois, publicou "O Reino e o Poder", livro que conta a história do jornal mais famoso do mundo.

Folha - O que essa crise vai mudar no modo de fazer jornalismo?
Gay Talese -
Vai deixar os editores mais fortes e os repórteres mais cuidadosos. É bom. Na última geração, as coisas não têm sido bem feitas na América. Nós não fazemos as coisas direito.

Folha - Como o quê?
Talese -
Não fazemos carros direito, não fazemos bem ternos. E não fazemos matérias direito, porque a reportagem se tornou muito tática, confiando em e-mail, telefones, gravações. Não é cara a cara. Quando eu era repórter, nunca usava o telefone. Queria ver o rosto das pessoas. Os dois editores não viam a cara do repórter que eles contrataram. E as reclamações de editores de que Jayson Blair deveria parar de escrever foram feitas por e-mail.
Isso é muita tecnologia no jornalismo. Não se anda na rua, não se pega o metrô ou um ônibus, um avião, não se vê, cara a cara, a pessoa com quem se está conversando. Esse é o primeiro ponto.
Ponto dois: não há atribuição suficiente de declarações às pessoas. Deveria ser o fim das pessoas falando "off the records". Se a pessoa não quer me dar a informação, ok, eu não quero a informação. Tem de haver "accountability" [obrigação de prestar contas]. A chave é "accountability".

Folha - Mas o sr. não acha que o "off the records" foi importante em casos como o Watergate?
Talese -
Não acho. O chamado "Garganta Profunda" do Watergate pode ter sido três pessoas, cinco pessoas, uma pessoa, pode ser ninguém. Eles queriam tanto destruir o presidente Nixon, queriam tanto vê-lo sair de Washington, que mais cedo ou mais tarde fariam qualquer coisa.
Eu escrevi uma longa carta ao "New York Times" em 1999 reclamando que uma edição que eu li naquele dia tinha 15 reportagens nas quais as fontes não eram mencionadas. Uma era de Washington, outra era uma história internacional, outra de negócios, outra estava na página esportiva, tudo. Os repórteres ficaram muito preguiçosos. Eles estão tão preguiçosos que isso os leva a mentir.
O repórter que mentiu e arruinou a carreira de tanta gente certamente nunca deveria ter começado uma carreira. Mas isso tudo representou a tecnologia, dizer que você está num lugar quando você não está, roubar dos outros, plágio.
Então a resposta é: o que aconteceu foi uma boa coisa. Eles tinham de fazer isso. Tinham de fazer algo dramático porque o "New York Times" é como o governo dos EUA. Ele ensina ao mundo que esse é o caminho a seguir, essa é a coisa certa a fazer.
Tinham de fazer isso com eles mesmos, porque eles pedem às grandes empresas para se livrarem de seus diretores.

Folha - Com a saída dos editores, haverá mudança real?
Talese -
Vai ficar da maneira que deveria ser. Eu escrevi um bilhete a Howell Raines depois do caso do Jayson Blair e disse: "Espero que, quando avaliar as mudanças, você considere [não escrever mais] "fontes", ou se livrar do excesso de "fontes'".
Ele nunca me respondeu. Isso é estúpido. Eu sou uma velha pessoa que conheceu o jornal e que entende o jornal. Há um pouco de presunção no "Times".
O "New York Times" foi como com o terrorismo. Tem tamanha equipe de segurança no prédio, e eles permitiram a esse repórter terrivelmente ridículo, Jayson Blair, entrar e se tornar parte do ambiente interno, como um terrorista, espalhar o terror sobre a verdade do jornal, como antraz.
Eles o deixaram passar pela segurança, assim como os pilotos do 11 de setembro. Ele estava fazendo o que é o veneno do jornalismo, que é mentir. Não olharam na cara dele. Os editores que foram forçados a renunciar não tiveram sabedoria para ver que ele não pertencia ao jornal.
Você tem de julgar pessoas quando é jornalista. Espera-se que você saiba se deve confiar na pessoa quando está colhendo informação. Toda escola de jornalismo deveria ensinar isso.

Folha - E o publisher Arthur Sulzberger Jr., o publisher?
Talese -
Foi ele quem começou tudo. Sulzberger é o dono, então o dono pode sempre culpar o executivo por fazer isso, mas o dono contratou essas duas pessoas, especialmente Howell Raines.
Eles queriam fazer ação afirmativa. Minorias não têm nada a ver com jornalismo. Jornalismo não é minoria, é um mundo à parte. Você é um jornalista, não um negro, um chinês, um brasileiro, um italiano ou um judeu. Você não é de nenhuma nacionalidade. Eles não deveria promover uma pessoa porque ela é uma lésbica, um negro, um italiano, isso é ridículo.

Folha - O questionamento à liderança do sr. Sulzberger pode continuar a prejudicar o jornal?
Talese -
Não, ele ainda está lá. Ele é parte da família. Eles têm a loja. Eu não conheço ninguém que foi preparado para substituí-lo. Talvez exista alguém. Eu apenas não conheço outro Sulzberger, eles poderiam vir com uma mulher, não sei. Se eles aparecessem com uma mulher, mudaria a história.
Acho que o que eles fizeram foi: ok, precisamos fazer algo grande, muito grande. Estive com um repórter à noite e ele me contou como foi no prédio. Disse: "O "Times" tinha de mostrar algo à equipe, que estava brava".
O "Times" prega às empresas americanas sobre sua responsabilidade, o "Times" tinha de fazer a mesma coisa. E o fato de que não se livraram da família, bem, isso é difícil de fazer. O rei tem os vassalos. Eles têm os vice-reis lá, e então eles matam os vice-reis. Eles se livraram de dois vice-reis. Mas a dinastia Sulzberger ainda está lá.

Folha - O "Times" vai continuar sendo o "velho" "Times"? Como isso afeta sua credibilidade?
Talese -
O "Times" é uma instituição que está no negócio há mais de cem anos. A troca de editores é como no governo americano. O governo americano tem maus presidentes. Alguns são mandados embora, como Nixon. E o país segue em frente.
O país é bom e mau. Às vezes o país é desprezado pelo mundo como agora, como deveria ser, porque está sob má administração. E há muitos Jaysons Blairs. Existem mentirosos em Washington e mentirosos no "New York Times". O "Times" e Washington frequentemente se refletem, porque o governo é o establishment, e o "New York Times" é o jornal do establishment.

Folha - O neoconservador Bill Kristol escreveu na "Weekly Standard" que o "Times" não estaria à altura do grande diário de que os EUA precisariam. Os neoconservadores podem usar este momento para construir uma alternativa?
Talese -
O jornal foi conservador demais, nunca desafiou a administração. O "Times" nunca disse a seus repórteres para entrar no Departamento da Defesa e falar: "Provem-nos que [o Iraque] tem armas de destruição em massa".


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