São Paulo, quinta-feira, 08 de junho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Erramos em respeitar a herança da ONU"

Em entrevista à Folha, premiê de Timor Leste nega que crise tenha raízes étnicas e descarta renunciar, como exigem rebeldes

Mari Alkatiri diz que forças "invisíveis" organizaram ataques que deixaram país à beira da guerra civil e que pode pedir policiais ao Brasil

MARCELO NINIO
DA REDAÇÃO

Há quatro anos a comunidade internacional -o mundo lusófono em particular -saudou a independência de Timor Leste como uma vitória da liberdade, após os 27 anos de brutal ocupação indonésia que se seguiram à colonização portuguesa. Nas últimas semanas o minúsculo país, pior colocado no ranking do FMI (PIB per capita de US$ 400, último colocado entre 192 nações), mergulhou em uma crise que parecia empurrá-lo para a beira da guerra civil e da desintegração. O estopim foi uma rebelião de militares, mas em poucos dias a violência tomou conta do país -principalmente da capital, Dili-, deixou 30 mortos e converteu-se no caos generalizado que levou o governo a pedir tropas estrangeiras. No centro do confronto está o premiê Mari Alkatiri, que aprovou a expulsão dos soldados em março, e cuja demissão é exigida pelos rebeldes para suspender os ataques. Em entrevista concedida à Folha em português irretocável, Alkatiri, 55, descartou a renúncia, reconheceu que a herança deixada pela ONU originou alguns dos problemas atuais e disse que poderá pedir ao Brasil o envio de policiais para a segunda fase da estabilização, que deve começar em três meses. A seguir, trechos da entrevista, concedida por telefone, de Dili.

 

FOLHA - Muitos culpam o sr. pela crise. Há dois dias uma multidão pediu sua saída em Dili. O sr. aceitaria renunciar se disso dependesse a volta à calma em Timor?
MARI ALKATIRI -
Eu ignoro a pressão e não aceito a renúncia. Essas acusações não são novas. Começaram logo depois de eu ser nomeado, por grupos que queriam entrar no governo.

FOLHA - A expulsão dos 590 militares foi um erro?
ALKATIRI -
Em qualquer parte do mundo quem abandona o quartel tem que ser demitido. Aqui há um fenômeno político, que se misturou com essa questão disciplinar. A crise foi tratada de forma superficial.

FOLHA - E qual a análise certa?
ALKATIRI -
A razão é sempre a mesma. Aproximam-se as eleições de 2007 e ninguém tem dúvida de que o partido do governo voltará a ganhar. Então, a violência é o caminho.

FOLHA - O sr. disse que há uma tentativa de golpe em movimento. Quem está por trás?
ALKATIRI -
As caras visíveis todos sabem quais são, dos ex-militares aos políticos que se escondem atrás deles. As invisíveis nós vamos descortinar.

FOLHA - Uma outra queixa é que o seu grupo, que durante a ocupação indonésia estava fora do país, defende um projeto que não atende aos anseios de quem ficou.
ALKATIRI -
É uma queixa falsa. No meu governo só 20% estiveram fora do país.

FOLHA - Há também alegações de que na origem da crise estão as divergências étnicas.
ALKATIRI -
A crise é profundamente política. É uma tentativa de mudar o governo sem levar em consideração a Constituição. Se fosse étnica já teríamos tido um banho de sangue.

FOLHA - Em artigo publicado no caderno Mais! no último domingo dois pesquisadores brasileiros afirmam que a adoção do português como língua oficial, apesar de ser falado por menos de 5% da população, também gerou descontentamento.
ALKATIRI -
Quando se adotou o português em Angola e Moçambique também não era falado por mais de 5% ou 6% da população e nunca foi fonte de problemas. Se [o idioma] se tornou um incômodo é porque interesses estranhos tentaram usá-lo para criar problemas.

FOLHA - A guerra civil é um risco?
ALKATIRI -
Eu nunca acreditei na possibilidade de guerra civil em Timor Leste. O povo não quer mais guerras. Para evitar isso é que nós pedimos a intervenção de forças internacionais. O governo conseguiu evitar derramamento de sangue ao conter seus simpatizantes.

FOLHA - A fragilidade institucional deixada pela ONU facilitou a eclosão da crise? Olhando para trás o sr. acha que a reconstrução do país deveria ter sido diferente?
ALKATIRI -
Aqui e acolá poderia ter sido melhor. Nossa polícia foi constituída pela ONU, com a filosofia de que todos podem ser recrutados. Naturalmente todos os cidadãos têm direitos, mas em qualquer país há critérios para definir os membros da Defesa. Aqui não, optamos pela reconciliação. A ONU falhou e nós falhamos por termos respeitado a liderança [da ONU].

FOLHA - Tropas brasileiras seriam bem-vindas?
ALKATIRI -
Neste momento achamos que tropas já não são necessárias. Estamos pensando em uma polícia robusta para a segunda fase da estabilização. Nisso os brasileiros talvez possam ajudar.


Texto Anterior: Oriente Médio: Hamas faz acordo com Fatah para retirar milícia das ruas
Próximo Texto: Frase
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.