São Paulo, sexta-feira, 08 de julho de 2005

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PASSADO E PRESENTE

Um ataque ao coração do antigo império

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há uma célebre fotografia aérea, de meados dos anos 1920, tirada pelo capitão Alfred Buckham, da Royal Air Force, abrangendo toda a área central de Londres, dos dois lados do rio Tâmisa, envolta pela névoa do crepúsculo.
A foto foi chamada "O Coração do Império" e se tornou instantaneamente um dos ícones da cultura britânica. O que a torna um emblema tão forte é que, graças ao aperfeiçoamento das técnicas aerofotográficas durante a Primeira Guerra Mundial, foi possível configurar o núcleo central da capital do Império Britânico numa única imagem, ao mesmo tempo compacta, dinâmica e simbólica do choque entre a história e a modernidade.
Àquela altura a Grã-Bretanha encabeçava o maior império colonial jamais instituído, estendendo-se pelos cinco continentes e pelos dois hemisférios da Terra. A sede do império era a Inglaterra, berço da economia industrial. Mas o centro nevrálgico dessa vasta rede de poder econômico, militar e cultural, era a cidade de Londres. Mais especificamente, era o estreito perímetro urbano ao redor da catedral de Westminster, a área conhecida como Central London.
Circunscritas nesse pequeno território se distribuíam todas as funções vitais do império. A oeste, a zona pobre, ficavam as indústrias, os bairros populares, os armazéns e as docas. Ao leste, ao redor do Hyde Park e pelos subúrbios elegantes ao longo do Tâmisa, as áreas das mansões, do comércio de luxo e dos clubes aristocráticos. Ao norte, as classes profissionais e os imigrantes bem-sucedidos. Ao sul, na margem esquerda do rio, a concentração fabril e as populações famélicas. No centro, a City, eixo financeiro do mundo.
Grosso modo, essa estrutura se manteve, sobrevivendo aos bombardeios da Segunda Guerra, até os anos dourados da década de 60. Com os recentes processos de desindustrialização e globalização, a partir do governo conservador de Margareth Thatcher, houve o esvaziamento das áreas fabris da zona leste e das docas, desencadeando um processo especulativo destinado a atrair as hostes de yuppies gerados pela fermentação das bolsas de valores.


As bombas não visavam símbolos econômicos, políticos ou militares; seu alvo foi a população simples, das ruas e dos transportes públicos, a mesma que marchou no maior protesto contra a invasão do Iraque

A polarização social intensificada por essa efervescência especulativa foi acentuada pelo abandono da agenda do Estado do Bem-estar Social, levando à degradação dos serviços públicos, ao desemprego, à corrosão das comunidades e da vida cívica, culminando no gesto punk, que colocou Londres de volta no centro da cena cultural internacional.
Os trabalhistas de Tony Blair, ao renegarem sua plataforma política, encampando a agenda conservadora, não fizeram muito pela recuperação da cidade. As coisas só começaram a mudar, para melhor, a partir de meados dos anos 90, com a retomada da Prefeitura unificada, que havia sido fragmentada por Thatcher, através da liderança esclarecida e socialista de Ken Levingstone. Desde então o quadro mudou e a cidade vinha experimentando ares de renascimento, cujo clímax eufórico foi, anteontem, sua escolha como a sede dos Jogos Olímpicos de 2012.
No dia seguinte vieram as bombas. Quem as colocou conhecia muito bem a cidade e sabia o que fazia. Elas foram distribuídas de forma a demarcar precisamente o ataque coordenado ao perímetro definido pela linha de metrô que corre ao redor da área central, chamada Circle Line.
A primeira bomba, no horário do rush da manhã, detonou entre as estações de Liverpool Street e Aldgate East, o portal de entrada e saída da maciça população pobre da zona leste. A segunda explodiu na seqüência entre as estações de King's Cross e Russell Square, o eixo de distribuição entre a zona norte e a sul, através da Picadilly Line, sendo King's Cross a base do entroncamento ferroviário para todo o interior do país. A estação de Edgware Road, local da terceira explosão, é a chave da conexão leste-oeste e a base de acesso a Wimbledon e aos subúrbios afluentes ao longo do rio Tâmisa. A última bomba implodiu um ônibus em plena Bloomsbury, a região do British Museum e da Universidade de Londres, foco cultural da cidade.
A trágica ironia é que Londres foi o palco da maior manifestação contra a guerra do Iraque, a Marcha de Um Milhão. No auge da concentração no Hyde Park, Ken Livingstone discursou, alertando que apostar na violência só iria multiplicá-la, no Oriente Médio e ao redor do mundo, pondo em risco a própria Londres.
As bombas de ontem não visavam símbolos políticos, econômicos ou militares. Seu alvo foi a população simples, das ruas e dos transportes públicos. A mesma que marchou em massa pela tolerância, pelo respeito e pela paz. O que se atingiu em Londres não foi o coração do império, mas os corpos dos inocentes e o espírito da justiça.

NICOLAU SEVCENKO é professor de história na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humana da USP e autor de "Orfeu Extático na Metrópole" e "Literatura como Missão" (Companhia das Letras), entre outros..

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