São Paulo, sexta-feira, 08 de julho de 2005 |
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PASSADO E PRESENTE Um ataque ao coração do antigo império
NICOLAU SEVCENKO
Há uma célebre fotografia aérea, de meados dos anos
1920, tirada pelo capitão Alfred
Buckham, da Royal Air Force,
abrangendo toda a área central de
Londres, dos dois lados do rio Tâmisa, envolta pela névoa do crepúsculo.
A polarização social intensificada por essa efervescência especulativa foi acentuada pelo abandono da agenda do Estado do Bem-estar Social, levando à degradação dos serviços públicos, ao desemprego, à corrosão das comunidades e da vida cívica, culminando no gesto punk, que colocou Londres de volta no centro da cena cultural internacional. Os trabalhistas de Tony Blair, ao renegarem sua plataforma política, encampando a agenda conservadora, não fizeram muito pela recuperação da cidade. As coisas só começaram a mudar, para melhor, a partir de meados dos anos 90, com a retomada da Prefeitura unificada, que havia sido fragmentada por Thatcher, através da liderança esclarecida e socialista de Ken Levingstone. Desde então o quadro mudou e a cidade vinha experimentando ares de renascimento, cujo clímax eufórico foi, anteontem, sua escolha como a sede dos Jogos Olímpicos de 2012. No dia seguinte vieram as bombas. Quem as colocou conhecia muito bem a cidade e sabia o que fazia. Elas foram distribuídas de forma a demarcar precisamente o ataque coordenado ao perímetro definido pela linha de metrô que corre ao redor da área central, chamada Circle Line. A primeira bomba, no horário do rush da manhã, detonou entre as estações de Liverpool Street e Aldgate East, o portal de entrada e saída da maciça população pobre da zona leste. A segunda explodiu na seqüência entre as estações de King's Cross e Russell Square, o eixo de distribuição entre a zona norte e a sul, através da Picadilly Line, sendo King's Cross a base do entroncamento ferroviário para todo o interior do país. A estação de Edgware Road, local da terceira explosão, é a chave da conexão leste-oeste e a base de acesso a Wimbledon e aos subúrbios afluentes ao longo do rio Tâmisa. A última bomba implodiu um ônibus em plena Bloomsbury, a região do British Museum e da Universidade de Londres, foco cultural da cidade. A trágica ironia é que Londres foi o palco da maior manifestação contra a guerra do Iraque, a Marcha de Um Milhão. No auge da concentração no Hyde Park, Ken Livingstone discursou, alertando que apostar na violência só iria multiplicá-la, no Oriente Médio e ao redor do mundo, pondo em risco a própria Londres. As bombas de ontem não visavam símbolos políticos, econômicos ou militares. Seu alvo foi a população simples, das ruas e dos transportes públicos. A mesma que marchou em massa pela tolerância, pelo respeito e pela paz. O que se atingiu em Londres não foi o coração do império, mas os corpos dos inocentes e o espírito da justiça. NICOLAU SEVCENKO é professor de história na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humana da USP e autor de "Orfeu Extático na Metrópole" e "Literatura como Missão" (Companhia das Letras), entre outros.. Texto Anterior: Análise: Barbaridades de Blair e Bush Próximo Texto: Outras notícias - Iraque sob tutela: Embaixador egípcio seqüestrado é morto no Iraque Índice |
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