São Paulo, domingo, 08 de agosto de 2010

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Em 5 anos, Nova Orleans renasce branca

Maioria negra, retirada à força em megaenchente causada pelo Katrina em 2005, vê influência política se esvair

Prefeito da cidade é o 1º branco a ocupar o cargo desde 78; praticamente todos os órgãos eletivos locais embranqueceram

Gary Coronado - 30.ago.2005/Associated Press
Moradores encaram inundação no centro de Nova Orleans

ANDREA MURTA
ENVIADA ESPECIAL A NOVA ORLEANS

A tragédia do furacão Katrina em Nova Orleans completa cinco anos neste mês com um legado que vai muito além das casas ainda destruídas da cidade: o equilíbrio de poder foi totalmente realinhado, e a clivagem racial, aprofundada.
A maioria negra, que sofreu retirada forçada durante a enchente ocorrida após o furacão, viu sua dominância sobre a política das últimas décadas ir se esvaindo até que praticamente todos os órgãos eletivos locais "embranqueceram".
Foi eleito neste ano o primeiro prefeito branco (Mitch Landrieu) desde 1978. Na Assembleia Municipal, só há um negro. Até o conselho de educação tem maioria branca. E não há hoje um líder político negro que reagrupe a comunidade. Antes do Katrina, as instituições tinham maiorias negras.
Moradores e estudiosos afirmam que a virada é resultado de um esforço deliberado. O primeiro plano de reconstrução da cidade previa fazer parques nos bairros negros devastados. Para onde os antigos moradores voltariam? De preferência, para lugar nenhum.
O plano acabou vetado, mas a reconstrução se focou nas regiões de maior renda.
Bairros turísticos e de negócios estão recuperados. Já a área do Baixo Distrito 9 (Lower 9th Ward), bairro negro que sofreu um verdadeiro tsunami quando as barragens se romperam e a água dos rios inundou Nova Orleans, segue cheia de mato e casas destruídas.
Quando a Folha visitou o bairro, um dos poucos presentes, Craig Converse, 40, nascido e criado ali, contou que voltara havia só pouco mais de um mês. "Aquele vizinho morreu na enchente, aquele outro também", dizia, apontando lotes vazios. "O resto não sei onde está."
Lance Hill, diretor do Instituto Sulista de Educação e Pesquisa da Universidade Tulane, desconfia das estimativas de população da cidade. "As cifras são infladas. É só andar no centro para ver o abandono." Ele rejeita os dados de que a população já voltou a corresponder a 80% da era pré-Katrina (355 mil). "De 30% a 40% dos pobres nunca voltaram."
O voto negro caiu junto. De até 65% do total antes do Katrina, passou a até 53% na última eleição.

CLIVAGEM
Hill, que é branco, define o motivo da mudança: racismo. Diz que a aristocracia branca de Nova Orleans nunca se conformou em perder o poder político pela mudança demográfica.
"Brancos ricos abertamente aproveitaram a oportunidade" do Katrina, diz. "Houve um movimento real para impedir a volta dos negros."
A cidade ainda é hostil aos desalojados. Faltam empregos, e o único hospital público continua fechado.
Para a advogada de direitos civis Mary Howell, "a polarização e a divisão racial estão mais profundas hoje do que há muito, muito tempo". Figura icônica na cidade, Howell lembra que "muita gente disse em 2005 que estávamos melhores sem [os negros]". "Esse é um legado muito doloroso do Katrina."
Até o especialista em reconciliação Ervin Staub, que atuou em Ruanda após o genocídio, diagnosticou "trauma étnico em massa".
Mas, se expôs uma disputa de poder, o furacão evidenciou a resiliência dos nativos. Uma pesquisa de 2008 indicou que 75% dos ainda desalojados queriam voltar. "O povo é quase inquebrável", diz Howell. "A determinação de lutar por suas casas e de ser daqui, lutar por este lugar, foi e é enorme."


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