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São Paulo, domingo, 09 de fevereiro de 2003

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IRAQUE NA MIRA

Richard Butler, ex-chefe de inspeções da ONU, diz não ter dúvida de que Bagdá possui armas de destruição em massa

Saddam tem de "pôr as armas na mesa"

Ahmad al Rubaye -2.fev.2003/France Presse
Carro com os inspetores da ONU chega a uma suposta fábrica de leite em Abu Gharib, cerca de 15 km a oeste de Bagdá


OTÁVIO DIAS
DA REDAÇÃO

Não há nenhuma dúvida de que o Iraque ainda possui armas de destruição em massa, e a única forma de o país completar seu desarmamento de forma crível é "colocando sobre a mesa" os armamentos ainda existentes e mostrando provas inquestionáveis do que já foi destruído.
É o que afirma o australiano Richard Butler, 60, que chefiou a Unscom (Comissão Especial da ONU para o Desarmamento do Iraque) de 1997 a 99. "O Iraque afirma não ter mais essas armas, mas uma simples declaração de que elas foram destruídas não é suficiente. Eles precisam mostrar provas", disse.
Butler chefiou a comissão no momento mais conturbado das inspeções devido à falta de colaboração do Iraque, entre outros problemas. Em dezembro de 1998, a ONU ordenou a saída dos inspetores e, poucas horas depois, EUA e Reino Unido iniciaram, sem autorização do Conselho de Segurança (CS), quatro dias de bombardeios ao país (Operação Raposa do Deserto).
Na época, o Iraque acusou Butler de espionar para os EUA, transmitindo aos americanos informações obtidas durante as inspeções e que teriam servido para o Pentágono definir alvos em território iraquiano. O Iraque também disse que um relatório de Butler -no qual ele acusou o país de não colaborar com as inspeções- havia sido cuidadosamente elaborado para dar aos EUA uma justificativa para o ataque.
Butler negou qualquer ligação com os EUA e disse que as acusações faziam parte de uma campanha para tirá-lo da chefia da Unscom e flexibilizar as exigências para o desarmamento do Iraque.
Ele acabou saindo em 1999, e as inspeções ficaram praticamente paralisadas até novembro de 2002, quando os EUA ameaçaram atacar o Iraque se o país não fosse finalmente desarmado.
Em entrevista à Folha, feita por telefone de Sidney (Austrália), Butler disse que está chegando o "momento da verdade", no qual o CS da ONU terá de decidir o que fazer em relação ao Iraque. Mas afirma ser contra um ataque dos EUA sem autorização da ONU.

Folha - Em 1997, quando chefiou a Unscom, o sr. sentiu na própria pele a falta de colaboração por parte do regime iraquiano. Houve uma mudança de atitude agora?
Richard Butler -
Infelizmente não. Eles ficaram ainda mais inteligentes em confundir os inspetores e mostrar apenas o que querem mostrar. Está claro -e o atual chefe dos inspetores, Hans Blix, disse isso- que o Iraque não tomou a decisão central de abrir mão de suas armas de destruição em massa.

Folha - O sr. pode dar exemplos de como o regime iraquiano dificulta as inspeções da ONU?
Butler -
Eles monitoram todas as mensagens enviadas pelos inspetores, por rádio ou telefone, e tentam antecipar para onde estão indo. Escondem indícios e materiais relacionados aos programas de armas. Além disso, os inspetores estão sempre acompanhados por oficiais iraquianos, o que deixa outros funcionários apreensivos.

Folha - Por que é tão difícil, com todos os meios à disposição da ONU, provar a existência de armas de destruição em massa?
Butler -
Os iraquianos escondem materiais e desenvolvem armas no subsolo. E há indícios de que o Iraque instalou laboratórios de armas biológicas em caminhões. Embora eles possam ser vistos do céu, por satélite ou aviões de espionagem, há tantos caminhões no país que é difícil identificá-los.

Folha - A ONU insiste em poder entrevistar a sós cientistas que já tiveram ligação com os programas de armas. Eles podem ajudar?
Butler -
Pessoas que já participaram de programas de armas do Iraque e depois desertaram deram informações muito importantes. O principal depoimento foi o de Hussein Kamel, genro de Saddam, que fugiu para a Jordânia em 1995 e revelou coisas fundamentais. Depois, ele quis voltar ao Iraque, fez um acordo com Saddam, mas foi morto 24 horas após pisar em Bagdá. Se os cientistas se sentissem seguros para contar a verdade, os inspetores aprenderiam muito.

Folha - Mas não há como eles se sentirem seguros no Iraque.
Butler -
A resolução 1441 [novembro de 2002" determina que os cientistas devem ser autorizados a sair do Iraque, assim como membros de sua família, e receber garantias de segurança. Mas isso envolveria muita gente porque, no passado, Saddam Hussein mandou matar familiares de cientistas que fugiram e deram declarações. É um regime brutal que, para calar pessoas, costuma ameaçar suas famílias, inclusive crianças. Portanto, acho pouco factível que os cientistas digam a verdade, ainda que saiam do país.

Folha - Quais são as principais questões não esclarecidas?
Butler -
Segundo a resolução 687 da ONU, o Iraque não pode ter mísseis com alcance superior a 150 km, e não há dúvida de que há mísseis com alcance maior no país. Há importantes quantidades de agentes químicos, em especial do agente nervoso VX, desaparecidas. Também há vários aspectos do programa biológico que não foram suficientemente explicados. Sobre o programa nuclear, não tenho informações exatas, mas o Iraque certamente não revelou toda a verdade.
Mas o mais importante a dizer é que o Iraque afirma não ter mais armas de destruição em massa, mas nunca mostrou provas. Uma simples declaração de que elas foram destruídas não é suficiente, porque a resolução 687 exige que as armas sejam destruídas sob supervisão internacional. Então, eles precisam mostrar provas.

Folha - Existe alguma possibilidade de o Iraque não possuir mais armas de destruição em massa?
Butler -
Não, nenhuma possibilidade. A resposta é não. Simplesmente não.

Folha - Mas o Iraque é uma ameaça que justifique uma guerra?
Butler -
Se você morasse perto do Iraque, teria motivos para ficar nervoso. Mas o mais importante é que, se continuarmos a permitir que o Iraque quebre as leis internacionais e desenvolva armas de destruição em massa, o efeito ao redor do mundo será muito negativo. Haverá uma perda de confiança na determinação da comunidade internacional de implementar os tratados de não-proliferação de armas nucleares, químicas e biológicas. Por isso, é muito importante que Saddam seja impedido de seguir com seus programas militares.

Folha - O sr. acha que a ONU deve dar mais tempo aos inspetores ou deve dar um basta nessa situação?
Butler -
Acho que o Conselho de Segurança precisa formular um julgamento em breve sobre se o Iraque tomou a decisão central de entregar suas armas. E o Iraque precisa fazer isso de forma concreta, colocando as armas sobre a mesa, para todos verem. Precisa obedecer a lei, em vez de apenas fazer declarações seguidas de que não possui mais armas. Mas, caso o CS chegue à conclusão de que o Iraque não fará isso, então é possível que autorize o uso da força. Isso é diferente de uma ação unilateral dos EUA com o objetivo de provocar uma mudança de regime no Iraque. Uma ação unilateral, não aprovada pela ONU, é contra as leis internacionais.

Folha - Doze anos após o cessar-fogo da Guerra do Golfo, o Iraque ainda não cumpriu a resolução que exige que o país se desarme totalmente. Pela sua própria experiência, há alguma chance de que vá fazer isso agora?
Butler -
Não, acho que o Iraque não fará isso. Creio que o CS da ONU terá de enfrentar o momento da verdade no prazo de apenas algumas semanas.


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