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São Paulo, domingo, 09 de fevereiro de 2003

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Histórico das inspeções revela trapaças iraquianas

ENRIC GONZÁLEZ
DO "EL PAÍS"

Desde que, em 1991, após a Guerra do Golfo, o Conselho de Segurança (CS) da ONU aprovou a resolução 687, que ordenava o desarmamento do Iraque, Saddam Hussein vem burlando a vigilância internacional. Naquele momento, o Iraque era um país arrasado. Saddam era um tirano a ponto de cair. Os EUA acreditavam que bastaria uma leve pressão final para derrubar o ditador.
Foi com base nessa convicção que se redigiu a resolução 687, um documento que criou no norte e no sul do país -regiões de população curda e xiita, respectivamente- zonas ""de exclusão", fora do alcance do Exército de Saddam. O objetivo era favorecer as rebeliões populares nessas áreas.
A resolução também ordenou o desarmamento quase total do Iraque e criou uma Comissão Especial (Unscom) para verificar a destruição das armas. Ninguém imaginava que a resolução 687 fosse representar um grande fracasso da diplomacia multilateral.
Em 23 de junho de 1991 um grupo de inspetores da ONU apareceu de surpresa num quartel em Abu Gharib, subúrbio de Bagdá. A CIA havia comunicado a eles que o Exército iraquiano estava levando ao local ""grandes objetos redondos" tirados das ruínas da usina nuclear de Al Tuwaitha.
Quando um inspetor tentou fotografar a cena, um oficial fez disparos de advertência. Sem poder fazer nada, a equipe da ONU viu os objetos suspeitos sendo carregados em caminhões que saíam do quartel pelos fundos e partiam para destino desconhecido.
O sueco Rolf Ekeus, chefe da Unscom, correu para apresentar seu protesto ao vice-presidente, Tareq Aziz, que o convenceu se tratar de um mal-entendido.

Comitê secreto
Ekeus não sabia que uma semana antes Saddam tinha colocado Aziz no comando de um alto comitê dedicado a ocultar toda espécie de armas e planos e a frustrar as investigações da Unscom. Ninguém soube disso até 1995, quando o mundo estava muito mais interessado no sofrimento que as sanções estavam causando à população iraquiana do que nas atividades secretas de Saddam.
Em 7 de julho de 1991, o comitê chefiado por Aziz decidiu que era impossível esconder o arsenal todo e que, portanto, era preciso renunciar a boa parte dele para poder salvar o essencial. Foi posto em andamento um processo de destruição num desfiladeiro situado perto de Tikrit.
Mísseis, gases e bactérias foram eliminados, sem testemunhas nem provas, numa violação flagrante da resolução 687, que exigia a presença de inspetores em qualquer ato voltado à eliminação de armas.
Desde aquele momento e em quase todas as ocasiões -quase dez- em que Bagdá apresentou à ONU uma declaração sobre seus arsenais, Saddam se referiu à ravina de Tikrit para assegurar que seus arsenais foram destruídos e que a exigência internacional de desarmamento foi satisfeita.
A Unscom foi constituída de forma improvisada, pensada para ser de curta duração. A comissão esperou até 1995 para contratar seu primeiro biólogo, Richard Spertzel. Os serviços secretos israelenses facilitaram o acesso de Spertzel a documentos que provavam a compra por parte do Iraque de até dez toneladas de caldo de cultivo necessários para o desenvolvimento de cepas como a do antraz. Spertzel comprovou depois que o volume comprado chegava a 40 toneladas.
Em julho de 1995 uma cientista iraquiana, Rihab Taha, confessou aos inspetores que o governo estava desenvolvendo vários programas para a produção de germes. Em agosto, ocorreu a deserção de Hussein Kamel -genro de Saddam, fundador da Guarda Republicana e um dos poucos dirigentes que conheciam o estado dos arsenais secretos- e de seu primo Izz Al Din Al Majid.
Kamel revelou que Saddam vinha enganando os inspetores, que dispunha de laboratórios móveis e que vários programas de armas estavam em pleno funcionamento. Saddam Hussein convenceu Kamel, que estava entediado no exílio, de que não sofreria represálias se retornasse ao Iraque. Kamel e seu primo voltaram ao país e foram executados.

Trabalho infrutífero
Em abril de 1997, após seis anos de trabalho infrutífero, Rolf Ekeus compareceu diante do CS para reconhecer que sua missão tinha se transformado num acúmulo de frustrações. Os iraquianos se esforçavam apenas para dissimular.
Em junho de 1996 os inspetores viram que uma série de objetos com todo o aspecto de mísseis Scud eram carregados em caminhões numa base da Guarda Republicana. Bagdá lhes explicou que eram ""pilares de concreto que pareciam mísseis". O tradutor de Ekeus, segundo Kamel, era espião de Saddam. Ekeus abandonou a Unscom em julho de 1997.
Em setembro do mesmo ano seu substituto, o australiano Richard Butler, exigiu de Saddam uma nova ""declaração honesta, completa e final" -a sexta- sobre o estado de seus arsenais. ""Isto não é nem sequer remotamente digno de crédito", comentou Butler ao recebê-la. No dia 17 daquele mês, uma equipe de inspetores foi retida por horas diante dos portões de uma indústria química, enquanto toneladas de documentos eram carregados em caminhões ou destruídos numa fogueira no telhado da fábrica.
A crise estourou em 29 de outubro, quando Tareq Aziz anunciou que seu governo não iria autorizar a presença de americanos nas equipes da Unscom, já que eles seriam espiões. Os EUA pediram ao CS que agisse para evitar o naufrágio das inspeções, mas sua iniciativa não encontrou eco.
No dia 1º de novembro de 1998, Saddam anunciou a suspensão de toda e qualquer cooperação com a Unscom. Butler e os últimos membros da Unscom em território iraquiano deixaram o país. Em 16 de dezembro, Bill Clinton ordenou a retomada dos bombardeios sobre o Iraque.
A oposição republicana o acusou de tentar desviar a atenção da população americana do escândalo Monica Lewinsky e do processo de impeachment do qual era alvo. Batizado de Operação Raposa do Deserto, o bombardeio foi qualificado por Clinton como ""vitória" e esquecido.
Daquele momento em diante, a política de Washington consistiu em manter as patrulhas aéreas nas zonas de exclusão e pensar o mínimo possível em Saddam. George W. Bush chegou à Casa Branca em janeiro de 2001 com o propósito de resolver o problema. Mas não tinha pressa em fazê-lo, até que aconteceram os atentados de 11 de setembro e ele lançou a guerra ao terrorismo. E incluiu o Iraque no ""eixo do mal", ao lado do Irã e da Coréia do Norte.


Tradução de Clara Allain


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