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São Paulo, domingo, 09 de fevereiro de 2003

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IRAQUE NA MIRA

O analista Michael Ignatieff questiona se o país terá poder suficiente para cumprir as tarefas que assumiu

'Poder imperial é um fardo para os EUA'

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Embora tenha caráter imperial, já que busca realizar missões típicas de impérios tradicionais, como depor o governo de um Estado estrangeiro, instalar uma nova administração no país derrotado militarmente e estabilizar politicamente uma região inteira (o Oriente Médio) para fazer com que a geopolítica regional sirva a seus interesses, o poder dos EUA também é um fardo.
A análise é de Michael Ignatieff, diretor do Centro Carr de Política de Direitos Humanos, da Kennedy School of Government -da Universidade Harvard (EUA)-, e autor de dezenas de livros e trabalhos acadêmicos sobre geopolítica e direitos humanos.
De acordo com ele, o poder americano é um fardo porque nada garante que o país venha a conseguir cumprir sua missão, pois ela é cercada de desafios, como "construir um Estado estável no Iraque e impedir a disseminação de um antiamericanismo selvagem". "A questão não é saber se a América é poderosa demais, mas determinar se ela é suficientemente poderosa para realizar essas tarefas", avalia Ignatieff.
Entre suas obras recentes destacam-se "The Warrior's Honor: Ethnic War and the Modern Conscience" (a honra do guerreiro: guerra étnica e a consciência moderna), "Virtual War: Kosovo and Beyond" (guerra virtual: Kosovo e além) e "The American Empire: The Burden (o império americano: o fardo).
Leia a seguir a entrevista de Ignatieff, por e-mail, à Folha.

Folha - O sr. classifica o poder dos EUA de imperial, mas salienta que ele também é um fardo. Como explicar esse aparente paradoxo?
Michael Ignatieff -
A iminente operação militar americana contra o Iraque é imperial porque envolve tarefas típicas de um império: depor o governo de outro Estado, instalar uma nova administração no país derrotado, estabilizar politicamente toda a região [Oriente Médio" e fazer com que a geopolítica regional sirva aos interesses dos EUA.
Isso tudo se torna um fardo porque há dúvidas reais a respeito da capacidade dos EUA de atingir esses objetivos, que são bastante ambiciosos. Além disso, não é certo que os americanos venham a conseguir sobrepor os obstáculos que terão pela frente. Construir um Estado estável no Iraque é um desafio, impedir a disseminação de um antiamericanismo selvagem é outro desafio.
E, ainda mais importante, há o desafio de impor algum tipo de acordo de paz ao Oriente Médio, não pondo fim às esperanças palestinas de poder vir a ter um Estado soberano. A questão não é, portanto, saber se a América é poderosa demais, mas determinar se ela é suficientemente poderosa para realizar essas tarefas.

Folha - Por que o sr. é favorável à intervenção militar americana no Iraque se boa parte de seu trabalho acadêmico é dedicada ao estudo dos direitos humanos?
Ignatieff -
Baseio-me em três razões ao defender a guerra contra o Iraque. Em primeiro lugar, há um regime tirânico no país, que viola os direitos humanos mais básicos de sua população e tem um histórico de uso de armas de destruição em massa contra civis.
Em segundo lugar, o regime de Saddam sabe muito bem o que significam agressões externas, pois já as cometeu contra o Irã [a guerra entre os dois países ocorreu entre 1980 e 1988" e contra o Kuait [país invadido pelas forças iraquianas em 1990 e libertado por uma coalizão internacional, liderada pelos EUA, em 1991".
Finalmente, o Iraque tem ou terá em breve capacidade para desenvolver armas de destruição em massa, o que tornará o país muito mais difícil de ser dissuadido de suas intenções beligerantes e, portanto, capaz de invadir o Kuait de novo, podendo até dominar o Golfo. Ora, trata-se de uma região que é responsável pela produção de uma quantidade considerável do petróleo comercializado internacionalmente.

Folha - Qual é sua opinião sobre os ataques preventivos preconizados pela Doutrina Bush? Com base nela, o ataque ao Iraque pode ser apenas o primeiro de uma série?
Ignatieff -
Os ataques preventivos podem ser justificados, como última alternativa para resolver um problema, quando formas pacíficas de desarmamento, como inspeções da ONU, não funcionam e a aquisição da tecnologia para criar armas letais tornaria um regime perigoso irrefreável.
No caso do provável ataque preventivo ao Iraque, a razão é simples: se os americanos esperarem até o dia em que Saddam terá armas nucleares, o Iraque se tornará uma nova Coréia do Norte. Ou seja, Saddam será, então, incontrolável se começar a atacar seus vizinhos. Assim, o custo para contê-lo será horrendo. Em tese, outros ataques poderão ocorrer, mas isso não é tão simples.

Folha - Como a guerra afetaria a geopolítica do Oriente Médio?
Ignatieff -
Uma campanha militar bem-sucedida transformará os EUA na potência dominante no Oriente Médio, com o poder e o prestígio necessários para orquestrar o fechamento de um acordo de paz entre Israel e os palestinos, provavelmente em termos bastante favoráveis a Israel.
Uma guerra malsucedida, que demore muito para ser resolvida ou que não termine com uma vitória clara dos EUA, poderá provocar uma considerável instabilidade na região. Uma guerra rápida seguida de uma rápida retirada das tropas americanas do território iraquiano também geraria uma enorme instabilidade, podendo causar uma guerra civil no Iraque e, provavelmente, além de suas fronteiras.

Folha - A essência da nova política externa americana relega as instituições internacionais, sobretudo a ONU, a um papel secundário?
Ignatieff -
Se a operação militar americana contar com a anuência da ONU, a entidade sairá da crise atual fortalecida, desempenhando um papel central na resolução de conflitos. Todavia, se o Conselho de Segurança bloquear a ação militar contra o Iraque e os EUA levarem adiante sua intenção de depor Saddam, ambas as partes terão sua autoridade internacional gravemente minada.

Folha - A política externa atual dos EUA poderá prejudicar os interesses americanos a longo prazo, como dizem vários analistas?
Ignatieff -
Tudo depende da evolução da situação geopolítica atual. Como sempre digo, devemos ser práticos. Assim, não podemos esquecer de que o sucesso atrai amigos. Por outro lado, o fracasso sempre atrai inimizades.


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