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IRAQUE NA MIRA
O analista Michael Ignatieff questiona se o país terá poder suficiente para cumprir as tarefas que assumiu
'Poder imperial é um fardo para os EUA'
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
Embora tenha caráter imperial,
já que busca realizar missões típicas de impérios tradicionais, como depor o governo de um Estado estrangeiro, instalar uma nova
administração no país derrotado
militarmente e estabilizar politicamente uma região inteira (o
Oriente Médio) para fazer com
que a geopolítica regional sirva a
seus interesses, o poder dos EUA
também é um fardo.
A análise é de Michael Ignatieff,
diretor do Centro Carr de Política
de Direitos Humanos, da Kennedy School of Government -da
Universidade Harvard (EUA)-,
e autor de dezenas de livros e trabalhos acadêmicos sobre geopolítica e direitos humanos.
De acordo com ele, o poder
americano é um fardo porque nada garante que o país venha a conseguir cumprir sua missão, pois
ela é cercada de desafios, como
"construir um Estado estável no
Iraque e impedir a disseminação
de um antiamericanismo selvagem". "A questão não é saber se a
América é poderosa demais, mas
determinar se ela é suficientemente poderosa para realizar essas tarefas", avalia Ignatieff.
Entre suas obras recentes destacam-se "The Warrior's Honor:
Ethnic War and the Modern
Conscience" (a honra do guerreiro: guerra étnica e a consciência
moderna), "Virtual War: Kosovo
and Beyond" (guerra virtual: Kosovo e além) e "The American
Empire: The Burden (o império
americano: o fardo).
Leia a seguir a entrevista de Ignatieff, por e-mail, à Folha.
Folha - O sr. classifica o poder dos
EUA de imperial, mas salienta que
ele também é um fardo. Como explicar esse aparente paradoxo?
Michael Ignatieff - A iminente
operação militar americana contra o Iraque é imperial porque envolve tarefas típicas de um império: depor o governo de outro Estado, instalar uma nova administração no país derrotado, estabilizar politicamente toda a região
[Oriente Médio" e fazer com que a
geopolítica regional sirva aos interesses dos EUA.
Isso tudo se torna um fardo porque há dúvidas reais a respeito da
capacidade dos EUA de atingir esses objetivos, que são bastante
ambiciosos. Além disso, não é
certo que os americanos venham
a conseguir sobrepor os obstáculos que terão pela frente. Construir um Estado estável no Iraque
é um desafio, impedir a disseminação de um antiamericanismo
selvagem é outro desafio.
E, ainda mais importante, há o
desafio de impor algum tipo de
acordo de paz ao Oriente Médio,
não pondo fim às esperanças palestinas de poder vir a ter um Estado soberano. A questão não é,
portanto, saber se a América é poderosa demais, mas determinar se
ela é suficientemente poderosa
para realizar essas tarefas.
Folha - Por que o sr. é favorável à
intervenção militar americana no
Iraque se boa parte de seu trabalho
acadêmico é dedicada ao estudo
dos direitos humanos?
Ignatieff - Baseio-me em três razões ao defender a guerra contra o
Iraque. Em primeiro lugar, há um
regime tirânico no país, que viola
os direitos humanos mais básicos
de sua população e tem um histórico de uso de armas de destruição em massa contra civis.
Em segundo lugar, o regime de
Saddam sabe muito bem o que
significam agressões externas,
pois já as cometeu contra o Irã [a
guerra entre os dois países ocorreu entre 1980 e 1988" e contra o
Kuait [país invadido pelas forças
iraquianas em 1990 e libertado
por uma coalizão internacional,
liderada pelos EUA, em 1991".
Finalmente, o Iraque tem ou terá em breve capacidade para desenvolver armas de destruição em
massa, o que tornará o país muito
mais difícil de ser dissuadido de
suas intenções beligerantes e, portanto, capaz de invadir o Kuait de
novo, podendo até dominar o
Golfo. Ora, trata-se de uma região
que é responsável pela produção
de uma quantidade considerável
do petróleo comercializado internacionalmente.
Folha - Qual é sua opinião sobre
os ataques preventivos preconizados pela Doutrina Bush? Com base
nela, o ataque ao Iraque pode ser
apenas o primeiro de uma série?
Ignatieff - Os ataques preventivos podem ser justificados, como
última alternativa para resolver
um problema, quando formas pacíficas de desarmamento, como
inspeções da ONU, não funcionam e a aquisição da tecnologia
para criar armas letais tornaria
um regime perigoso irrefreável.
No caso do provável ataque preventivo ao Iraque, a razão é simples: se os americanos esperarem
até o dia em que Saddam terá armas nucleares, o Iraque se tornará
uma nova Coréia do Norte. Ou seja, Saddam será, então, incontrolável se começar a atacar seus vizinhos. Assim, o custo para contê-lo será horrendo. Em tese, outros
ataques poderão ocorrer, mas isso
não é tão simples.
Folha - Como a guerra afetaria a
geopolítica do Oriente Médio?
Ignatieff - Uma campanha militar bem-sucedida transformará
os EUA na potência dominante
no Oriente Médio, com o poder e
o prestígio necessários para orquestrar o fechamento de um
acordo de paz entre Israel e os palestinos, provavelmente em termos bastante favoráveis a Israel.
Uma guerra malsucedida, que
demore muito para ser resolvida
ou que não termine com uma vitória clara dos EUA, poderá provocar uma considerável instabilidade na região. Uma guerra rápida seguida de uma rápida retirada
das tropas americanas do território iraquiano também geraria
uma enorme instabilidade, podendo causar uma guerra civil no
Iraque e, provavelmente, além de
suas fronteiras.
Folha - A essência da nova política externa americana relega as instituições internacionais, sobretudo
a ONU, a um papel secundário?
Ignatieff - Se a operação militar
americana contar com a anuência
da ONU, a entidade sairá da crise
atual fortalecida, desempenhando um papel central na resolução
de conflitos. Todavia, se o Conselho de Segurança bloquear a ação
militar contra o Iraque e os EUA
levarem adiante sua intenção de
depor Saddam, ambas as partes
terão sua autoridade internacional gravemente minada.
Folha - A política externa atual
dos EUA poderá prejudicar os interesses americanos a longo prazo,
como dizem vários analistas?
Ignatieff - Tudo depende da
evolução da situação geopolítica
atual. Como sempre digo, devemos ser práticos. Assim, não podemos esquecer de que o sucesso
atrai amigos. Por outro lado, o
fracasso sempre atrai inimizades.
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