|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Guerrilha cobra imposto na Venezuela
Grupos marxistas, paramilitares e criminosos comuns têm trânsito livre na fronteira; seqüestros e extorsões são rotineiros
FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL A GUASDUALITO E EL NULA (VENEZUELA)
A fase aguda da crise regional provocada pela invasão
do território do Equador, na operação colombiana em
que foi morto o número 2 das Farc (Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia), Raúl Reyes, aparentemente foi superada. Mas a causa do problema, o
transbordamento militar, humano e político do
conflito interno colombiano, velho de quatro décadas, continua latente. Como aponta relatório recente do centro de estudos International Crisis Group,
o ponto débil do plano linha-dura de Bogotá contra
a narcoguerrilha são as divisas, pois a estratégia colombiana é confrontar diretamente as Farc em lugar de cercá-las com linhas fixas de defesa. "O plano
está empurrando a crise humanitária em direção às
fronteiras", diz o relatório. É este transbordamento
que a Folha mapeia nesta edição, com enviados especiais aos pontos quentes das fronteiras da Colômbia com a Venezuela, o Equador e o Brasil.
Depois de alguma insistência, o comerciante Martín (nome fictício) leva o repórter até o
escritório no fundo de sua loja,
em Guasdualito, cidade da
fronteira com a Colômbia distante 860 km de Caracas. Fechada a porta, mostra um pequeno papel com o selo do grupo guerrilheiro Exército de Liberação Nacional (ELN) recebido em janeiro, quando foi
obrigado a dar o equivalente a
R$ 3.900 em mercadorias. Ali
se lê: "Agradecidos por sua colaboração. Em caso de outra sugestão, apresentar este recibo".
O recibo traz o nome da loja,
a descrição dos produtos entregues, especifica que se trata da
Frente de Guerra Oriental do
ELN e termina com a assinatura do grupo, segunda maior
guerrilha colombiana.
"Até seis meses atrás, aqui
era dominado pelas Farc, mas
agora o ELN assumiu", diz o comerciante, que negociou com
os colombianos após ter seus
dois filhos ameaçados de seqüestro, no ano passado.
Importada do país vizinho, a
"vacina" -pagamento de imposto de guerra- é amplamente disseminada na região da
fronteira venezuelana. A prática é atribuída a vários grupos
armados ilegais ou a criminosos que se aproveitam da fama
das Farc, do ELN e dos paramilitares para agir em seu nome.
Daí a necessidade do recibo, para que o comerciante mostre
caso haja nova "sugestão".
"Aqui tem Farc, elenos
[ELN], paras, boriches [Forças
Bolivarianas de Liberação,
guerrilha emergente venezuelana]. Todos querem "comer" e,
se não pagar, quebram você",
diz outra comerciante, sempre
na condição de anonimato.
Os três comerciantes ouvidos pela reportagem justificaram a lei do silêncio na cidade
contando a história de um colega que, cansado de pagar a "vacina", deu entrevista à rádio local contra a prática. Horas depois, foi assassinado a tiros.
A "vacina" não é o único crime importado da Colômbia:
são comuns registros e relatos
de seqüestros, pistolagem e recrutamento de menores na região de Guasdualito, cidade de
50 mil habitantes situada numa
imensa e pouco povoada planície que atravessa os dois países
e cuja atividade principal é a
pecuária.
Na última terça-feira, o médico dominicano-venezuelano
Andrés del Orbe, 57, foi seqüestrado às 18h15 dentro do seu
consultório por quatro homens
armados. A sua paciente foi jogada no chão. É o sexto seqüestro em Guasdualito desde o início do ano.
"Aqui está pior do que nunca", diz Lumay, mulher de Orbe, radicado há 29 anos em
Guasdualito. "Saia depois das
19h para você ver um povado
desolado de faroeste." Segundo
ela, até anteontem os seqüestradores não haviam realizado
nenhum contato. O seqüestro
de Orbe gerou uma rara onda
de indignação em Guasdualito.
Nos vidros traseiros de vários
carros, lia-se a frase, pintada
em tinta branca: "Liberem o
médico do povo".
"A única coisa que quero é
que o presidente Hugo Chávez
libere também os seqüestrados
da Venezuela", diz Lumay, em
alusão aos reféns colombianos
recém-liberados pelas Farc
após negociação com o mandatário venezuelano.
O crime de seqüestro é cada
vez mais freqüente nos Estados
venezuelanos da fronteira, e
muitos deles são atribuídos às
Farc. De acordo com a Federação Nacional dos Pecuaristas
(Fedenaga), há cerca de 70 venezuelanos em cativeiro atualmente, dos quais a maioria estaria em poder do grupo liderado por Manuel Marulanda, o
"Tirofijo".
O território venezuelano
também estaria sendo usado
para esconder seqüestrados colombianos. No mês passado, o
engenheiro Jorge Andres Sierra, liberado após 20 meses de
cativeiro com o ELN, disse que
passou parte do tempo na Venezuela, onde o grupo guerrilheiro tinha "um pacto de não-agressão", como definiu um de
seus captores.
Chávez admite o crescimento da indústria dos seqüestros e
disse recentemente que a Venezuela faz "fronteira com as
Farc, e não com a Colômbia",
mas negou a existência de provas que vinculem as guerrilhas
a esse tipo de crime.
Antes e depois de Chávez
Um dos poucos a falar abertamente sobre guerrilheiros na
região, o padre jesuíta Acacio
Belandria, 78, afirma que a presença é antiga, mas tem se tornado cada vez mais enraizada.
"As guerrilhas estão há uns
20 anos nesta região", diz Belandria, em entrevista na casa
paroquial de La Nula ("O Nada"), cidade de 35 mil habitantes a 30 km da fronteira. "No
começo, vieram a descanso, depois começaram o trabalho político, organizativo, e hoje se
converteram numa ameaça interventora e violadora da soberania nacional."
Belandria diz que, além das
"vacinas", os guerrilheiros também cobram 5% do valor das
obras públicas e ainda recrutam jovens e adolescentes para
trabalhos como o de vigilância,
enquanto alguns são levados à
Colômbia para receber treinamento. Para o jesuíta, o governo Chávez mudou a estratégia
dos governos anteriores, que
buscavam controlar as guerrilhas militarmente. Desde então, diz Belandria, há uma tentativa de reconhecê-las como
"atores políticos", mas sem resultados após nove anos.
Há oito anos em La Nula, o
padre Belandria conta um caso
que, diz, ilustra o que significam o Estado e a guerrilha na
fronteira: após receber uma
ameaça vinda do ELN de que
seu filho seria morto caso não
pagasse R$ 39 mil, um fazendeiro procurou o chefe local do
grupo, que negou a autoria da
extorsão e enviou três guerrilheiros para vigiar sua casa.
Dias depois, o autor da ameaça voltou a procurar o fazendeiro e foi capturado e desmascarado pelo ELN.
"Para resolver esses casos, as
pessoas não recorrem às autoridades venezuelanas, ineficientes e incapazes. Aqui todo
mundo tem alguém conhecido
na guerrilha, é necessidade."
Texto Anterior: Correa quer prazo para reatar com Uribe Próximo Texto: Na tríplice fronteira, Colômbia vence Índice
|