São Paulo, domingo, 09 de março de 2008

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Guerrilha cobra imposto na Venezuela

Grupos marxistas, paramilitares e criminosos comuns têm trânsito livre na fronteira; seqüestros e extorsões são rotineiros

FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL A GUASDUALITO E EL NULA (VENEZUELA)

A fase aguda da crise regional provocada pela invasão do território do Equador, na operação colombiana em que foi morto o número 2 das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), Raúl Reyes, aparentemente foi superada. Mas a causa do problema, o transbordamento militar, humano e político do conflito interno colombiano, velho de quatro décadas, continua latente. Como aponta relatório recente do centro de estudos International Crisis Group, o ponto débil do plano linha-dura de Bogotá contra a narcoguerrilha são as divisas, pois a estratégia colombiana é confrontar diretamente as Farc em lugar de cercá-las com linhas fixas de defesa. "O plano está empurrando a crise humanitária em direção às fronteiras", diz o relatório. É este transbordamento que a Folha mapeia nesta edição, com enviados especiais aos pontos quentes das fronteiras da Colômbia com a Venezuela, o Equador e o Brasil.

Depois de alguma insistência, o comerciante Martín (nome fictício) leva o repórter até o escritório no fundo de sua loja, em Guasdualito, cidade da fronteira com a Colômbia distante 860 km de Caracas. Fechada a porta, mostra um pequeno papel com o selo do grupo guerrilheiro Exército de Liberação Nacional (ELN) recebido em janeiro, quando foi obrigado a dar o equivalente a R$ 3.900 em mercadorias. Ali se lê: "Agradecidos por sua colaboração. Em caso de outra sugestão, apresentar este recibo".
O recibo traz o nome da loja, a descrição dos produtos entregues, especifica que se trata da Frente de Guerra Oriental do ELN e termina com a assinatura do grupo, segunda maior guerrilha colombiana.
"Até seis meses atrás, aqui era dominado pelas Farc, mas agora o ELN assumiu", diz o comerciante, que negociou com os colombianos após ter seus dois filhos ameaçados de seqüestro, no ano passado.
Importada do país vizinho, a "vacina" -pagamento de imposto de guerra- é amplamente disseminada na região da fronteira venezuelana. A prática é atribuída a vários grupos armados ilegais ou a criminosos que se aproveitam da fama das Farc, do ELN e dos paramilitares para agir em seu nome. Daí a necessidade do recibo, para que o comerciante mostre caso haja nova "sugestão".
"Aqui tem Farc, elenos [ELN], paras, boriches [Forças Bolivarianas de Liberação, guerrilha emergente venezuelana]. Todos querem "comer" e, se não pagar, quebram você", diz outra comerciante, sempre na condição de anonimato.
Os três comerciantes ouvidos pela reportagem justificaram a lei do silêncio na cidade contando a história de um colega que, cansado de pagar a "vacina", deu entrevista à rádio local contra a prática. Horas depois, foi assassinado a tiros.
A "vacina" não é o único crime importado da Colômbia: são comuns registros e relatos de seqüestros, pistolagem e recrutamento de menores na região de Guasdualito, cidade de 50 mil habitantes situada numa imensa e pouco povoada planície que atravessa os dois países e cuja atividade principal é a pecuária.
Na última terça-feira, o médico dominicano-venezuelano Andrés del Orbe, 57, foi seqüestrado às 18h15 dentro do seu consultório por quatro homens armados. A sua paciente foi jogada no chão. É o sexto seqüestro em Guasdualito desde o início do ano.
"Aqui está pior do que nunca", diz Lumay, mulher de Orbe, radicado há 29 anos em Guasdualito. "Saia depois das 19h para você ver um povado desolado de faroeste." Segundo ela, até anteontem os seqüestradores não haviam realizado nenhum contato. O seqüestro de Orbe gerou uma rara onda de indignação em Guasdualito. Nos vidros traseiros de vários carros, lia-se a frase, pintada em tinta branca: "Liberem o médico do povo".
"A única coisa que quero é que o presidente Hugo Chávez libere também os seqüestrados da Venezuela", diz Lumay, em alusão aos reféns colombianos recém-liberados pelas Farc após negociação com o mandatário venezuelano.
O crime de seqüestro é cada vez mais freqüente nos Estados venezuelanos da fronteira, e muitos deles são atribuídos às Farc. De acordo com a Federação Nacional dos Pecuaristas (Fedenaga), há cerca de 70 venezuelanos em cativeiro atualmente, dos quais a maioria estaria em poder do grupo liderado por Manuel Marulanda, o "Tirofijo".
O território venezuelano também estaria sendo usado para esconder seqüestrados colombianos. No mês passado, o engenheiro Jorge Andres Sierra, liberado após 20 meses de cativeiro com o ELN, disse que passou parte do tempo na Venezuela, onde o grupo guerrilheiro tinha "um pacto de não-agressão", como definiu um de seus captores.
Chávez admite o crescimento da indústria dos seqüestros e disse recentemente que a Venezuela faz "fronteira com as Farc, e não com a Colômbia", mas negou a existência de provas que vinculem as guerrilhas a esse tipo de crime.

Antes e depois de Chávez
Um dos poucos a falar abertamente sobre guerrilheiros na região, o padre jesuíta Acacio Belandria, 78, afirma que a presença é antiga, mas tem se tornado cada vez mais enraizada.
"As guerrilhas estão há uns 20 anos nesta região", diz Belandria, em entrevista na casa paroquial de La Nula ("O Nada"), cidade de 35 mil habitantes a 30 km da fronteira. "No começo, vieram a descanso, depois começaram o trabalho político, organizativo, e hoje se converteram numa ameaça interventora e violadora da soberania nacional."
Belandria diz que, além das "vacinas", os guerrilheiros também cobram 5% do valor das obras públicas e ainda recrutam jovens e adolescentes para trabalhos como o de vigilância, enquanto alguns são levados à Colômbia para receber treinamento. Para o jesuíta, o governo Chávez mudou a estratégia dos governos anteriores, que buscavam controlar as guerrilhas militarmente. Desde então, diz Belandria, há uma tentativa de reconhecê-las como "atores políticos", mas sem resultados após nove anos.
Há oito anos em La Nula, o padre Belandria conta um caso que, diz, ilustra o que significam o Estado e a guerrilha na fronteira: após receber uma ameaça vinda do ELN de que seu filho seria morto caso não pagasse R$ 39 mil, um fazendeiro procurou o chefe local do grupo, que negou a autoria da extorsão e enviou três guerrilheiros para vigiar sua casa.
Dias depois, o autor da ameaça voltou a procurar o fazendeiro e foi capturado e desmascarado pelo ELN.
"Para resolver esses casos, as pessoas não recorrem às autoridades venezuelanas, ineficientes e incapazes. Aqui todo mundo tem alguém conhecido na guerrilha, é necessidade."


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