São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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IRAQUE OCUPADO

Lynndie England, que abusou de prisioneiros, é a vilã; Jessica Lynch, ferida em combate, torna-se heroína

Americanas típicas viram ícones da guerra

ANDREW BUNCOMBE
DO ""THE INDEPENDENT"

O sol se punha sobre os vales recobertos de bosques da cidade natal da soldado Lynndie England, na Virgínia Ocidental, enquanto um grupo de meninos de nove anos, usando bonés e uniformes de beisebol, chegava ao fim de seu treino num campo com gramado perfeitamente cortado. Heather Gainer colocou os quatro filhos no banco de trás de sua van e disse: ""É assustador. O que aconteceu com nossa cidade? Isto aqui é o interior dos Estados Unidos."
Nos últimos dias, a paz de Fort Ashby foi seriamente abalada pelas revelações sobre o envolvimento de England no abuso e na humilhação sexual de iraquianos na prisão de Abu Ghraib, a oeste de Bagdá, onde ela prestava serviço como reservista do Exército.
O choque de ver as fotos que mostram a moça de 21 anos rindo enquanto aponta para a genitália de um prisioneiro encapuzado e puxando outro por uma correia de cachorro atingiu a cidadezinha com a força dos tornados que England amava quando criança.
A família e os amigos da soldado simplesmente não conseguem acreditar que a garota alegre e corajosa ao lado da qual cresceram possa ter estado envolvida com aquelas cenas abomináveis. Essa não é nossa Lynn, dizem. Ela simplesmente deve ter estado no lugar errado, na hora errada.
Outra jovem da Virgínia Ocidental à qual se aplicou a mesma frase pronta foi Jessica Lynch, 22. Lynch vem do outro lado do Estado, mas sua cidade natal, Palestine, não é tão diferente assim de Fort Ashby. Tem os mesmos vales íngremes, a mesma luz pálida e doce nas noites de primavera, a mesma ausência de crimes, a mesma sensação de que se conhece todos e o que todos fazem. E a mesma escassez de oportunidades para os jovens, a mesma falta de bons empregos, a urgência de escapar de seus limites.
E ambas as jovens fizeram exatamente isso. Jessica Lynch entrou para o 507º Corpo de Manutenção para conseguir uma bolsa de estudos para a faculdade. Lynndie England entrou para a 372ª Companhia de Polícia Militar, com sede na vizinha Cumberland, para escapar de seu trabalho noturno numa fábrica de processamento de frangos. Ela queria ser meteorologista. Quando criança, seu filme favorito era ""Twister".
Faz pouco mais de um ano desde que o mundo primeiro ouviu falar de Jessica Lynch. Sua unidade militar fazia parte de um comboio mal planejado que atravessava a cidade de Nassiriah, no sul do Iraque, quando foi emboscado por milicianos iraquianos. Lynch, gravemente ferida, foi feita prisioneira e levada ao hospital Saddam Hussein, na mesma cidade.
Na noite de 1º de abril de 2003, Lynch foi resgatada por forças especiais americanas. O Pentágono acordou repórteres para relatar a dramática operação. Num momento em que a invasão liderada pelos EUA parecia enfrentar problemas, o resgate da soldado Lynch era ótimo para dar uma injeção de moral nas tropas e no público. A verdade era um pouco diferente. Lynch não tinha levado tiros ou facadas de seus captores, não os combatera até sua arma travar, e as forças especiais não tinham encontrado nenhuma resistência no hospital quando foram buscá-la. Ela admitiu: o Pentágono a usara para fazer propaganda.
Apesar disso, Lynch fechou contratos para livro e filme e se tornou uma celebridade. Fotos suas de topless foram oferecidas -e compradas- pela revista "Hustler", mas o editor Larry Flynt decidiu não publicá-las. Ela podia não ser perfeita, disse ele, ""mas é uma boa garota".
Em Fort Ashby, os pais de England, Kenneth e Terrie, torcem para que boa parte da história de sua filha acabe revelando não ser exatamente o que pareceu à primeira vista. Também eles acreditam que sua filha seja uma boa garota. ""Assim como aconteceu com aquela Jessica Lynch, a história de minha filha está sendo exagerada", disse o pai, um ferroviário. ""Só que de modo negativo."
Na noite de quinta-feira, diante de uma sorveteria situada na praça central da cidade, Steven Witt tomava sorvete com sua mulher, Michelle, e os dois filhos. ""Acho que ainda é cedo para dizer ao certo o que aconteceu", comentou Witt, que é mecânico.
""Mas não foi tão ruim quanto as fotos que vimos algumas semanas atrás dos cadáveres mutilados dos civis americanos", disse. Sua mulher acrescentou: ""É difícil condenar pessoas quando você está vivendo sua vida normal".
Gainer, a mulher bem-humorada do treino de beisebol, foi ainda mais explícita na defesa da soldado: ""Não fomos lá para tomar chá com eles. Fomos porque eles explodiram 5.000 dos nossos." Ela acredita que o Iraque esteve envolvido nos atentados do 11 de Setembro? ""Sim." Outros expressaram tristeza. ""Acho que estão muito errados no que fizeram", disse Cindy Paugh, mãe de Brandi, de três anos.
Se os EUA estão fazendo um exame de consciência em relação à maneira como tratam prisioneiros, para muitos isso é algo que já deveria ter sido feito há muito tempo. A administração Bush alega que o país não está envolvido com tortura, mas em Guantánamo, base militar dos EUA em Cuba, ainda restam mais de 600 prisioneiros -apenas um deles branco, nenhum deles cristão- detidos durante a guerra contra o terrorismo, sem acusação formal e sem ter acesso a advogados.
E os EUA continuam, em segredo, a ""terceirizar" muitos dos presos que querem interrogar, mandando-os para ser ""amaciados" em países amigáveis do mundo árabe onde os direitos humanos são preocupação ainda menor.
Para algumas pessoas em Fort Ashby, as fotos de Abu Ghraib sugerem que os abusos cometidos no final do ano passado tenham sido organizados e ordenados por pessoas de escalão mais alto. ""Disseram a eles que era preciso fazer o que fosse necessário para arrancar informações daquela gente", disse a mãe de England.
Os moradores de Fort Ashby dizem que não existe segredo obscuro ou sinistro no passado de England. Não há histórico de abusos sofridos quando criança. Sobram relatos de como ela não tinha coragem de atirar em veados quando saía em expedições de caça. Ou seja, nunca foi do tipo cruel. E se perguntam por que uma jovem que vivia o tipo de vida que muitas deles viveram -nadando no riacho, andando de bicicleta durante os verões intermináveis- pode ter acabado envolvida em algo tão sórdido.
No ano passado, quando Jessica Lynch retornou a Palestine, ela foi recebida com festa nas ruas. Lynndie England está sendo mantida em Fort Bragg, na Carolina do Norte. Anteontem, foi formalmente acusada e pode enfrentar corte marcial, junto com seis outros soldados, incluindo Charles Graner, pai do filho que ela carrega na barriga. Não se sabe que tipo de recepção ela terá quando, finalmente, voltar para casa.


Tradução de Clara Allain


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