São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GIGANTE DESIGUAL

Distância econômica entre campo e cidade aumenta ano a ano, levando o governo a "redefinir prioridades"

China teme "latinização" da sociedade

CLÁUDIA TREVISAN
DE PEQUIM

Cao Jia Chun, 60, faz parte do contingente de 800 milhões de camponeses da China que está à margem dos benefícios trazidos pelo crescimento próximo de 9% ao ano que o país registrou desde o fim da década de 70. Entre Cao e os habitantes das prósperas cidades da costa leste há um abismo crescente, que coloca a China entre os países nos quais a desigualdade social aumentou mais rapidamente nos últimos 20 anos.
Empurrado pela pobreza de sua vila, Cao foi para Pequim há um ano, com o objetivo de ganhar a vida nas ruas tocando o er hu, clássico instrumento musical chinês. Ganha cerca de 200 yuan por mês (R$ 68) e diz que está melhor em Pequim do que em sua Província, Henan, ao sul da capital.
A distância entre a renda da cidade e a do campo, onde estão 63% dos chineses, cresce a cada ano e se reflete nos números da economia. Apesar de empregar a maior parte da população, a agricultura contribui só com 15% do PIB, enquanto a indústria e os serviços, atividades tipicamente urbanas, entram com 51,7% e 33,7%, respectivamente. Há pouco mais de 20 anos, em 82, o peso da agricultura era de 33,3%.
A crescente desigualdade social é um dos principais focos de preocupação do governo e de cientistas sociais, que temem a "latinização" da China, com a cristalização das mesmas disparidades de renda que se vêem nos países latino-americanos, sobretudo o Brasil.
Por enquanto, os números indicam que o país caminha nessa direção. O índice Gini, usado internacionalmente para medir o grau de desigualdade social dos países, passou de 0,28 em 1991 para 0,43 em 2003, o que indicava um grau de desigualdade próximo ao dos EUA (0,48). Apesar da degradação do índice chinês, ele ainda é bem melhor que o do Brasil, de 0,60, um dos piores do mundo.
Governada por um Partido Comunista que acaba de lançar uma grande campanha para fortalecer o estudo do marxismo, a China se transformou em um dos principais mercados de produtos de luxo do mundo, graças aos ricos, grupo pequeno, mas crescente.
Desde que se instalou na China (1993), a Ferrari vendeu cem carros, a maior parte nos últimos dois anos. Cada um custou US$ 221,5 mil, mais do que maioria dos chineses vai ganhar na vida. O país é o quinto melhor mercado da empresa, atrás de EUA, Europa, Japão e Hong Kong (sob controle chinês desde 1997).
As vendas da Armani no primeiro trimestre cresceram 17% na China, mais que os 15% dos EUA e os 3% de Japão e Europa. A grife italiana abriu sua primeira loja em Pequim em 1998 e já tem dez pontos em toda a China. Até 2008, pretende ampliar o número para algo entre 20 e 30 lojas.
Jacques-Franck Dossin, analista da Goldman Sachs, estima que a China venha a ser o mercado para produtos de luxo que mais crescerá até 2014. Ao fim do período, o país será o segundo mais importante do mundo para esse segmento, atrás apenas dos EUA.
Mas o número de pessoas entre o 1,3 bilhão de chineses com acesso a esses produtos é reduzidíssimo. A consultoria Monitor Group avalia que há apenas 28 milhões de chineses, ou 2,1% do total, com rendimento anual superior a US$ 6.000, o que os coloca na categoria de consumidores mais sofisticados. Dentro desse grupo, os que têm acesso a bens de luxo constituem uma parcela minúscula.
O país está mais rico e, em 2003, ultrapassou a barreira dos US$ 1.000 de renda per capita. Porém o aumento beneficiou sobretudo os habitantes das grandes cidades da costa leste, como Xangai, Pequim e a região de Cantão. Na área rural, a renda é de US$ 300 ao ano.
Em 1990, os habitantes das cidades ganhavam em média 2,2 vezes mais que os do campo. A distância subiu constantemente desde então, atingiu 3,11 vezes em 2002, segundo dados oficiais mais recentes, e já estaria em quatro vezes, na avaliação de Wang Chunguan, sociólogo da Academia Chinesa de Ciências Sociais.
O ritmo desigual de desenvolvimento agrava a distância entre campo e cidade a cada ano. Em 2003, a renda dos moradores do meio urbano cresceu 9%, enquanto a dos camponeses subiu 4,3%. Segundo Wang, o crescimento da renda no campo vem sendo inferior ao da cidade desde 1997, inclusive com queda da renda em alguns lugares do interior.
O problema do crescente abismo social está presente de forma constante nos discursos dos governantes chineses e nos jornais ligados ao Partido Comunista.
"As últimas estatísticas indicam que 10% das famílias mais ricas possuem 45% do total das propriedades nas zonas urbanas. Os 10% das famílias com mais baixa renda possuem apenas 1,4% das propriedades, e os restantes 80% da população possuem 53,6% das propriedades", diz artigo publicado em 2003 no "Diário do Povo", porta-voz do Partido Comunista.
"A crescente distância nos níveis de renda se transformou em um sério problema, pois a prosperidade da nação é dividida de forma desigual. (...) É o momento certo para que o governo redefina as prioridades de desenvolvimento, em favor do bem-estar da população", afirmou o mesmo jornal no final do ano passado.


Texto Anterior: Iraque ocupado: Americanas típicas viram ícones da guerra
Próximo Texto: Expansão do golfe simboliza a desigualdade
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.