São Paulo, domingo, 09 de maio de 2010

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"Novo Trabalhismo" deixa legado dúbio

Em 13 anos no poder, partido melhora indicadores sociais britânicos mas não logra se desvincular de responsabilidade por crise

Ideólogo do movimento, premiê Gordon Brown passa a ser chamado de "sem-teto" e "cadáver ambulante" pela mídia após derrota eleitoral

Stefan Wermuth - 7.mai.2010/Reuters
O premiê britânico Gordon Brown faz discurso em frente ao número 10 da Downing Street, após derrota nas eleições de quinta

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A LONDRES

A Terceira Via, quem diria, terminou com um líder transformado em sem-teto, ao menos na manchete de ontem do tabloide "The Sun", o jornal mais vendido do Reino Unido (3 milhões de exemplares).
O jornal, que foi tradicionalmente conservador, mas aderiu ao "Novo Trabalhismo" (também chamado de Terceira Via), ao ganhar a eleição de 1997, foi particularmente cruel com Gordon Brown, o premiê britânico, um dos ideólogos, aliás, da Terceira Via: disse que ele se transformara em um "squatter" entrincheirado no número 10 de Downing Street, a residência e escritório dos governantes britânicos.
"Squatter" é ocupante ilegal de um imóvel, o que Brown não é, formalmente. Tem o direito constitucional de permanecer premiê, no caso de a eleição não produzir maioria absoluta para algum outro partido, até que ela se forme de alguma maneira.
A maldade do tabloide, que neste ano apoiou os conservadores, é acompanhada pelos jornais mais sérios.
Sintomaticamente, duas publicações opostas coincidem numa mesma imagem, igualmente cruel, a respeito de Brown: o "Guardian" (tradicionalmente pró-trabalhistas, mas neste ano liberal) e o "Daily Telegraph" (tão "Tory", como são chamados os conservadores, que seu apelido é "Daily Torygraph").
Marina Hyde, colunista do "Guardian", escreve que Brown parece "aquela coisa da galinha que continua a caminhar mesmo tendo a cabeça cortada". Ecoa Anthony Seldon no "Telegraph": "Uma coisa é certa: Brown é um homem morto caminhando".

Sedução
Inglório fim para um movimento que seduziu muita gente quando lançado por Tony Blair, para designar uma via intermediária entre as tendências estatizantes presentes no DNA da social-democracia e o liberalismo puro e duro que se tornou hegemônico no planeta, em especial após a queda do Muro de Berlim e fim do comunismo.
Ecoou até no Brasil, seduzindo, por exemplo, Fernando Henrique Cardoso, então presidente. Mesmo Luiz Inácio Lula da Silva, originalmente à esquerda da social-democracia, participou de reuniões da Terceira Via, quando ela já mudara de nome, para "Progressive Governance".
Que o líder atual do Trabalhismo, inventor da Terceira Via, tenha se transformado em um "squatter" não quer dizer que o movimento tenha sido um fracasso completo. A história dos 13 anos dos trabalhistas no poder é o caso clássico de copo meio cheio, meio vazio.
Exemplos de meio cheio: 500 mil crianças deixaram a pobreza, a proporção de jovens que vai à universidade aumentou, quase todos os pacientes que procuram os hospitais públicos encontram vaga em no máximo 18 semanas, contra 18 meses antes, o gasto em educação passou de 49 bilhões de libras para quase o dobro (80 bilhões) e por aí vai.
Meio vazio: o Reino Unido é hoje praticamente tão desigual quanto o era no reinado dos conservadores.
Aliás, para uma sólida maioria, o copo está bem mais vazio do que cheio: uma pesquisa recente mostrou que aumentou de 40%, em 1997, para 71% o número de britânicos que acham que o país está se tornando um lugar pior para viver.
Mas a Terceira Via deixa um legado forte, conforme análise da revista "The Economist": "A julgar pela retórica dos adversários do Trabalhismo, ele foi bem-sucedido em tornar compulsória a compaixão pelos pobres, o entusiasmo pelo apoio a crianças pequenas e a universalização do Serviço Nacional de Saúde [público]".
De fato, o grande adversário dos trabalhistas, o líder conservador David Cameron, trouxe seu partido mais para o centro, adotou o slogan "Conservadorismo com Compaixão" e está agora sendo obrigado a negociar com os liberais-democratas, igualmente compassivos, a formação de um governo.
Ontem, aliás, os liberais estavam reunidos para discutir os termos do acordo, que teriam de ser aprovados por três quartos de seus 57 parlamentares mais os membros do Comitê Executivo.
E com certa urgência para evitar que o mercado financeiro abra na segunda-feira com Brown ainda entrincheirado em Downing Street.


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