São Paulo, domingo, 09 de junho de 2002

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ENTREVISTA

Para o filósofo alemão, a atual ideologia do fim das ideologias deixa a extrema direita à vontade para crescer
Vazio político ajuda radicais, diz Habermas

ALEXIS LACROIX
DO "LE FIGARO"

O filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas intervém pouco no debate político. Mas, agora que os países europeus assistem ao crescimento inesperado do voto de protesto, esse pensador da democracia alemã e do federalismo europeu não pode mais deixar de expressar seus temores.
Entretanto, em lugar do ""antifascismo para ser visto por todos", Habermas faz o discurso da verdade. Lembra que o mal conhecido como ""populismo" -que, como qualquer outra mercadoria, é capaz de se renovar- deve seus êxitos eleitorais à suposta modernidade das formações que o adotam.
Nascido em 1929, Habermas é um dos principais representantes da chamada Escola de Frankfurt. Escreveu, entre outros livros, "Mudança Estrutural na Esfera Pública" e "Direito e Democracia" (Tempo Brasileiro). Leia a seguir trechos de sua entrevista ao jornal francês ""Le Figaro".

Pergunta - O Partido da Liberdade austríaco, o Partido do Povo Dinamarquês, o Partido do Progresso, na Noruega, a Lista Pim Fortuyn, na Holanda, e o Vlaams Blok, na Bélgica -essas formações populistas são comparáveis ?
Jürgen Habermas -
Desde um ponto de vista abstrato, sempre é possível encontrar afinidades. É fato que todos esses movimentos decorrem de um estado de espírito comum, que parece ser quase onipresente entre as populações européias: a tendência a reagir com xenofobia, com a alergia ao outro e com o etnocentrismo às ameaças sofridas à segurança física, à propriedade e ao ambiente cultural imediato.

Pergunta - Podemos observar diferenças nítidas entre a extrema direita de um país e de outro?
Habermas -
Se nos ativermos a essas respostas e às formas de expressão política que elas assumem em toda a Europa, chamarão a atenção as diferenças de "fisionomia" entre os estilos nacionais de cada um dos partidos de inspiração populista. A tentativa de classificar as mentalidades de [Jean-Marie" Le Pen, Pim Fortuyn e [Jörg" Haider segundo suas gerações, de acordo com a percepção cultural dos adolescentes, se revela muito interessante.
Le Pen representa praticamente o bom vovô interiorano; Haider ostenta uma aparência mais contemporânea, livre de grande parte do legado ultrapassado de seu colega francês, e Pim Fortuyn, um homossexual intelectualmente brilhante, representou um modelo rigorosamente pós-moderno de provocador.

Pergunta - A força da extrema direita seria, então, a capacidade de adaptação ao mundo como ele é?
Habermas -
A comparação entre Le Pen, Haider e Pim Fortuyn nos permite fazer essa descoberta: o populismo de extrema direita não tem mais, obrigatoriamente, o odor proletário do século 19. Ele pode igualmente bem dobrar-se à lei da modernização comercial, seguindo o exemplo de um bem de consumo qualquer.

Pergunta - Voltemos ao primeiro turno da eleição presidencial na França. Como se explica o avanço do candidato da Frente Nacional?
Habermas -
O chamado êxito eleitoral de Jean-Marie Le Pen no último 21 de abril consistiu em grande medida na grande repercussão simbólica de um avanço estatístico que, na realidade, foi modesto, tendo se devido essencialmente à baixa participação dos eleitores de esquerda e à fragmentação desses votos.
O efeito simbólico desse avanço tornou-se maior pelo fato de ter privado a grande maioria desses eleitores de uma alternativa no segundo turno, o que traumatizou a esquerda profundamente. No segundo turno, pelo menos, ela foi às ruas em peso. Foi uma iniciativa salutar, especialmente com relação à opinião internacional.

Pergunta - Então o voto em Le Pen no primeiro turno teria representado a exasperação de parte do eleitorado que se sentia abandonada?
Habermas -
A hipótese que o sr. menciona, segundo a qual a classe política teria deixado a população de lado, me parece elitista, sentimentalista e, na maior parte do tempo, hipócrita.

Pergunta - Por que hipócrita?
Habermas -
Porque aqueles que recorrem a essa hipótese são pessoas que querem justificar o fato de terem tratado de forma puramente burocrática e rotineira a amargura das camadas mais marginalizadas do eleitorado, em vez de arregaçar as mangas para criar as condições econômicas e sociais que tornariam supérfluas as atitudes defensivas e regressivas.

Pergunta - Os temores ligados à globalização não são uma causa determinante do voto a favor da extrema direita?
Habermas -
Não apenas eles. O que faz falta neste momento é uma perspectiva global. Uma perspectiva a partir da qual a política possa ser vivida como maneira de modelar a evolução global. Na ausência dela, as pessoas se sentem implacavelmente expostas a essas grandes transformações.
Retorno por um instante à sua idéia de um eleitorado ""abandonado", de uma população que foi ""abandonada". É uma fórmula que, na realidade, pode ser correta -desde que não queira dizer o seguinte: que hoje em dia os políticos sentem que administram nada mais do que uma empresa prestadora de serviços, especializada nesta ou naquela função, ao lado da economia, da educação, dos transportes ou da saúde.
Assim, aceito que se fale de ""um eleitorado que foi abandonado", desde que seja para designar a atitude de uma classe política que se retira da política e deixa de levar em conta a possibilidade que a democracia oferece à sociedade de agir sobre ela mesma, através do viés de um voluntarismo forjado no espaço público.

Pergunta - O ""mainstream" federalista, que reúne a maior parte da esquerda e da direita, não criou entraves ao voluntarismo e não desmoralizou a ação política?
Habermas -
O que faz falta ao "mainstream" europeísta é a capacidade de dar à Europa fundamentos conquistadores necessários.
A tentativa de Lionel Jospin era justa em seu princípio, mesmo que seu promotor não tenha se engajado de maneira digna de crédito para levá-la adiante. O ex-premiê francês tinha a Europa como o projeto político de um certo modelo social capaz de opor uma resistência global ao neoliberalismo. Acontece que Jospin era pusilânime demais.
Em todo caso, é importante lutar por uma visão de futuro européia. Desde 1989, todos os partidos políticos acreditam na ideologia do fim das ideologias. Entretanto, ao liquidar os programas políticos que enxergavam um pouco além do presente imediato, ao destacar e ao ""promover" essa liquidação pelo recurso a expressões como Terceira Via ou ""novo centro", criou-se um vazio que está sendo rapidamente preenchido pelos ressentimentos da extrema direita, sem freio nem restrições.

Pergunta - O voto nas formações populistas não representa uma reivindicação social combativa (como acontecia, no passado, com o voto no Partido Comunista) -é muito mais um voto pela ""última chance"...
Habermas -
O populismo de direita é a expressão de uma forma específica de desesperança. Basta que uma única necessidade política da população seja frustrada para que a decepção se difunda.
Acontece que esta, por sua vez, leva ao desespero, a partir do momento em que um grupo humano se sente desconectado da instância ou entidade política através das quais lhe é possível influir de maneira consciente e voluntária sobre as condições objetivas da existência.
Uma política auto-referencial e ""preocupada" com ela mesma asfixia a centelha imaginativa e utopista dos cidadãos, e, na ausência desta, as reformas são atropeladas pela inércia e a rotina.

Pergunta - A constelação política ""pós-nacional" à qual o sr. se refere na Europa pode barrar a onda populista?
Habermas -
Eu falava há pouco do fatalismo que tomou conta da política, por boas razões. O poder de decisão dos Estados-nações está diminuindo. Mesmo assim, ainda pode ser reconquistado, em escala européia.

Pergunta - O que é preciso fazer?
Habermas -
Simplesmente seguir o caminho de Tony Blair [premiê britânico" e do que ele está preparando em conjunto com o primeiro-ministro espanhol, José María Aznar: não aprofundar a coesão democrática da União Européia, mas estreitar a rede de ligações horizontais entre os governos nacionais.
Se a França e a Alemanha não saírem de sua paralisia, a Europa corre o risco de ver acontecer com ela o que aconteceu com o velho Sacro Império Romano Germânico à véspera de sua explosão: virar uma ""máquina" monstruosa.


Tradução de Clara Allain


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