São Paulo, sábado, 09 de julho de 2005

Próximo Texto | Índice

TERROR EM LONDRES

Britânicos engolem o medo e fazem renascer o "espírito de blitz" -o mesmo da resistência aos nazistas na Segunda Guerra

Londres conta 50 mortos e, fleumática, tenta voltar à normalidade após ataque

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A LONDRES

ÉRICA FRAGA
DE LONDRES

Londres eram duas ontem, 24 horas depois dos atentados terroristas que mataram pelo menos 50 pessoas: havia uma cidade subterrânea, que ainda recolhia pedaços de corpos no vagão do metrô destroçado por uma bomba entre as estações King's Cross e Russell Square, e havia, na superfície, uma cidade que engolia o medo para voltar à normalidade possível, uma fleumática normalidade, como convém a britânicos.
A cidade que contava os mortos havia chegado a 50 até o fim da tarde de ontem, mas já sabia que seriam mais. "O número final não chegará aos três dígitos [cem, portanto]", dizia sir Ian Blair, chefe da Polícia Metropolitana.
A cidade que desafiava o terrorismo e sua própria paranóia, que já vem desde os atentados nos EUA em setembro de 2001, mandava um recado aos terroristas pela boca do prefeito Ken Livingstone: "Estejam onde estiverem, ainda aqui ou no exterior, vejam na semana que vem que, enquanto enterramos os mortos e rezamos por eles, muitos outros virão a Londres para chamar-se londrinos e defender aquilo que Londres representa [a liberdade]".
Até a contida rainha Elizabeth 2ª afrontou os terroristas ao sair em defesa do chamado "British way of life": "Aqueles que cometeram esses atos brutais contra pessoas inocentes devem saber que não mudarão nosso modo de vida", disse a soberana, ao visitar vítimas em um hospital.
Os jornais de ontem eram um reflexo nítido desse espírito, conforme registrou "The Wrap", o sumário da mídia britânica elaborado diariamente para assinantes pelo jornal "The Guardian": "Blitz spirit confronts terrorists", anunciava orgulhoso. O "espírito de blitz" é uma alusão à fantástica resistência de Londres e dos londrinos aos ataques da aviação nazista durante a Segunda Guerra.
Ecoava Trevor Phillips, presidente do Conselho para a Igualdade Racial: "Nossa cidade não se acovardará".
Não se acovardou de fato, pelo menos ontem. O dia, é verdade, começou com um movimento bem abaixo do normal tanto no metrô como nos ônibus, os dois alvos dos atentados da véspera. Mas, mesmo quem tomou o ônibus linha 30, uma de cujas unidades foi explodida em Tavistock Square, fazia questão de manter o desafio explicitado pelo prefeito, como Sarah Radcliffe, caixeira de uma loja de departamentos, loirinha e de sardas pronunciadas como a maioria das britânicas: "Não podemos deixar que eles [terroristas] determinem a nossa vida".
Amanda Kampala, emigrante africana, também passageira da linha 30, não permitiu que o terror guiasse sua vida, embora conte que só não morreu na quinta-feira porque se atrasou para pegar o ônibus -exatamente o que explodiu na Tavistock Square.
Aos poucos, o movimento foi tomando jeito de quase normalidade, à medida que a temperatura ia aumentando, até chegar aos 17C no início da tarde, para o que os britânicos chamam de verão.
Nos tradicionais ônibus de dois andares -justamente como o que explodiu-, os londrinos provavam que não mudariam mesmo seu modo de vida, como previa a rainha. Sem nenhum sinal aparente de preocupação, muitos liam como de costume seus livros ou jornais tranqüilamente, ainda que estivessem enfrentando o congestionamento nos trechos próximos aos locais dos atentados, onde o trânsito era atrapalhado pelo movimento de policiais e equipes de televisão ávidas por encontrar parentes de vítimas ou sobreviventes.
A normalidade só não era plena porque os londrinos convivem há anos, mas especialmente após o 11 de Setembro, com o medo de ataques terroristas. Depois dos atentados em Madri, em março de 2004, a paranóia só fez aumentar, até porque a própria Scotland Yard, a polícia britânica, avisava que um ataque era inevitável.
David Veness, então chefe do Departamento de Operações da Scotland Yard, dizia: "Londres é certamente um dos pontos mais vulneráveis. O perigo de ataque permanece, e o ponto não é saber se, mas quando".
O quando foi 7 de julho. Por isso, no dia seguinte, não podia haver plena normalidade, até porque pontos da cidade e partes da extensa rede de metrô continuavam bloqueados pela polícia para a retirada de corpos e as investigações na cena do crime.
Eram poucos pontos, no entanto, e neles os londrinos exibiam a fleuma sobre a qual já se escreveram dezenas e dezenas de tratados. Ao contrário de Nova York e Madri, após os respectivos ataques, a emoção era contida, como sempre é entre britânicos.
Havia, é verdade, buquês de flores depositados nos pontos próximos aos quatro locais dos atentados, mas não havia a catarata de flores e velas que surgiu de repente em Madri, na estação de Atocha, um dos alvos há um ano.
Mensagens junto com as flores, pouquíssimas. E contidas: "Bênção aos inocentes caídos e a todos os corajosos londrinos" (sempre o louvor à coragem), dizia bilhete junto às rosas deixadas na esquina da Edgware Road, em cuja estação deu-se um dos ataques.
Em King's Cross, onde estourou uma bomba, uma filha evocava em letrinhas miúdas numa carta o Salmos 23:1 ("O Senhor é meu pastor e nada me faltará") do Antigo Testamento, para agradecer a sobrevivência do pai.
Outras famílias enfrentavam a agonia de procurar parentes desaparecidos. Para essas, a vida não podia ser menos anormal. David Webb, por exemplo, parou para um café no fim da tarde, após percorrer cinco hospitais em busca de notícias da irmã, Laura, que poderia estar em um dos vagões de metrô atingidos ou no ônibus.
Os atentados não atingiram pessoalmente o francês Xavier Rebergue, que vive em Londres, onde é dono de uma agência de empregos. Mas ele não foi trabalhar por solidariedade a um desaparecido, de quem nem é parente. Ele conseguira havia pouco um trabalho para o conterrâneo francês Slamine Ihab, 19 anos, que sumiu na quinta-feira. Ontem, Reberge exibia em King's Cross um pequeno cartaz com a foto do jovem: "Por que estou fazendo isso por ele? Porque o pai está me ligando sem parar, desesperado".
Nos pontos de ônibus, nas estações de metrô, nos aeroportos, nos trens, o policiamento foi só muito discretamente reforçado.
"Não deixem restos nos vagões", avisa um rapaz que parece policial, na estação Paddington do metrô, mas é "funcionário de apoio à comunidade". O aviso não tem nada a ver com a limpeza, mas com o esquema de segurança: qualquer pacotinho de lixo deixado, por exemplo, em vagões do metrô pode ser tomado como bomba e desencadear um alerta -dois deles pelo menos pararam ontem linhas do metrô nas estações Euston e Waterloo.
Reforça a paranóia a dúvida sobre o tipo de terroristas que atacaram o metrô e o ônibus 30: foram suicidas ou usaram um "timer" para acionar as bombas?
Não havia, ainda, resposta definitiva, mas a Scotland Yard emitia todos os sinais de que trabalha mais com a segunda hipótese. Se verdadeira, significa que os terroristas estão vivos, soltos e, em tese, prontos para novos atentados. "O sinal que eles querem mandar é o de que ninguém está seguro", filosofa Brent Walztein, que passava perto da estação Edgware Road.
Ninguém mesmo. Mas entre a paranóia que esse tipo de sinal pode causar e a fleuma de ancestral genética, venceu ontem a fleuma.


Leia mais sobre os ataques em Londres na
http://www.folha.com.br/051881



Próximo Texto: Terror em Londres: Polícia pede que britânicos fiquem alertas
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.