São Paulo, domingo, 09 de setembro de 2007

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Bolívia distribui cheques da Venezuela

Recursos de Caracas financiam projetos municipais que são aprovados em um dia e não pedem contrapartida nem licitação

Oposição vê ingerência de Hugo Chávez e tentativa de Morales de comprar apoio em regiões onde tem menos força, como Santa Cruz

FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL A SANTA CRUZ

O programa "Bolívia muda, Evo cumpre" é o sonho de qualquer prefeito: projetos aprovados no mesmo dia de sua apresentação, financiados a fundo perdido e sem nenhuma contrapartida. Mas a generosa doação venezuelana a municípios bolivianos em plena crise política alimentou ainda mais a discussão sobre a natureza da ajuda do presidente Hugo Chávez ao colega Morales.
Financiado por uma doação de US$ 53,3 milhões da Venezuela, o programa vem bancando projetos de até US$ 225 mil em municípios do país escolhidos por Morales. Participam cerca de 60 prefeituras, a maioria no leste do país, onde o governo tem menos apoio em comparação com o altiplano.
A principal diferença da ajuda venezuelana é o percurso do dinheiro: ao contrário de outros programas de ajuda internacional, os recursos não passam pelo Tesouro da Bolívia, mas chegam às prefeituras por meio de cheques assinados pelo embaixador da Venezuela, Julio Montes.
"O governo nacional nem entra. Para a foto, aparece o presidente. Para o cheque e o contrato, assinamos diretamente com o embaixador da Venezuela", disse à Folha o prefeito de Warnes, Nilo Carmona, do partido oposicionista Unidade Nacional (UN, centro). "Como funciona o dinheiro venezuelano? Não sei, não nos interessa. Sei que é dinheiro doado."

"Dinheiro grátis"
Carmona é um dos 26 prefeitos do departamento de Santa Cruz (leste) convidados a participar da segunda fase do programa. No último dia 23, ele apresentou um projeto para a construção de postos de saúde em seu município, que tem um forte pólo agroindustrial.
Naquele mesmo dia, técnicos do governo federal analisaram e aprovaram o financiamento de três postos de saúde, com um desembolso imediato de 40% dos US$ 120 mil previstos -o restante será pago em duas parcelas iguais de 30%. O cheque foi entregue à noite pelo presidente Morales.
No evento, apenas o prefeito de La Guardia, Jorge Morales (sem partido), se recusou a receber o cheque: ele alegou que sua cidade merecia mais recursos do que o aprovado. "Não há um prefeito que tenha se recusado. Teria sido apedrejado em seu município. Mesmo que não goste, por que não vai receber dinheiro grátis?", diz Carmona.
As principais vantagens do programa são o tempo recorde para tramitar -um dia, enquanto os financiamentos tradicionais levam até um ano- e o formato de doação, sem exigência de contrapartida. Já as maiores limitações são o valor de US$ 225 mil, o teto da lei boliviana para projetos sem licitação, e o não-pagamento de lucro de empresas para a execução da obra, fazendo com que os projetos sejam realizados diretamente pelas prefeituras.
As obras já começaram em Warnes. O primeiro posto de saúde está sendo construído desde o fim de agosto no distrito de La Reforma, lugarejo onde predominam trabalhadores rurais, muitos deles bóias-frias.
Um dos sete trabalhadores da obra, Danilo Salvatierra, 19, conta que atualmente é preciso viajar 30 minutos para chegar ao posto mais próximo e que o distrito pedia a obra "há muito tempo". O pedreiro desconhecia a origem do dinheiro. "Pensei que era coisa da prefeitura."

Críticas
A ajuda venezuelana aos municípios tem sido duramente criticada pela oposição, que vê uma ingerência em assuntos internos e uma tentativa de Morales de comprar apoio nas regiões onde tem menos força política, sobretudo em Santa Cruz, no momento em que o país vive uma grave crise política em torno da Assembléia Constituinte.
"Esses recursos da Venezuela estão sendo manejados como recursos privados, não têm controle fiscal, e além disso são para fazer política, descaradamente pura política. É claro assim", disse à Folha o prefeito oposicionista de Potosí, René Joaquino (Aliança Social, esquerda). Ele não foi convidado no programa e afirma que não aceitaria o dinheiro de Chávez.
Para Branko Marinkovic, presidente do Comitê Cívico Pró-Santa Cruz, organismo liderado por empresários, a ajuda venezuelana é uma intromissão estrangeira. "O que fariam no Brasil se a Venezuela começar a distribuir dinheiro a prefeitos sem controle?"
O ministro da Fazenda boliviano, Luis Arce, admitiu que o programa é controlado diretamente pela Venezuela. "O presidente participa protocolarmente, porque é convidado pela embaixada venezuelana", disse ele a uma rádio.
Para Arce, o dinheiro venezuelano não precisa passar pelo Tesouro nacional. "Os governo municipais são autônomos e, portanto, seu orçamento não precisa estar no Orçamento Geral da Nação".
Questionado se o programa era simplesmente de ajuda aos municípios ou se tem intenção política, o prefeito Carmona disse que "são as duas coisas". "Mas me me parece uma boa estratégia. Em Warnes, onde pensamos as coisas sem cores partidárias, nós vamos receber o dinheiro do presidente."


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