São Paulo, domingo, 10 de abril de 2005

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Desarticulação da ala da igreja identificada com a Teologia da Libertação se deu por meio da divisão de arquidioceses e da censura

Papa silenciou progressistas brasileiros

FREDERICO VASCONCELOS
DA REPORTAGEM LOCAL

A desarticulação da chamada igreja progressista no Brasil durante o pontificado de João Paulo 2º se processou através da divisão de arquidioceses -com a redução do poder de lideranças como d. Paulo Evaristo Arns, em São Paulo, e d. Hélder Câmara, em Recife- e por meio da aplicação das "penas canônicas", punições destinadas a silenciar figuras expressivas da Teologia da Libertação, como os irmãos Leonardo Boff e Clodovis Boff.
Os bispos que não se submetiam à linha dura do Vaticano foram substituídos por outros, contrários ao espírito da Conferência de Medellín (1968) -em que bispos latino-americanos declararam a "opção preferencial pelos pobres"-, num "escandaloso processo de destruição do trabalho missionário que os predecessores haviam feito", segundo disse em 2003 o padre belga José Comblin. No Brasil desde 1958, trabalhando no Nordeste, Comblin foi alvo desse processo de esvaziamento, depois que o ultraconservador José Cardoso Sobrinho sucedeu a d. Hélder, arcebispo de Olinda e Recife.
O "silêncio obsequioso", a proibição de falar em público e de publicar suas idéias, foi imposta a Leonardo Boff por telefone, em 1984, por um funcionário do Vaticano. Vinte anos depois, d. Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia (MT), recebia a sugestão do núncio apostólico para deixar a cidade, "evitando um constrangimento ao novo bispo".
Um manifesto de 118 representantes da pastoral criticou o "autoritarismo e a falta de transparência". O documento ajudou a manter o bispo espanhol na cidade onde atuou durante 36 anos.
Casaldáliga também foi punido nos anos 80 com o "silêncio obsequioso", como castigo pelas críticas a bispos da Nicarágua ("eles não contestavam os crimes", diz) e por haver celebrado missas "à causa negra e à causa indígena".
O tratamento de temas sensíveis ao Vaticano -como o dogmatismo da moral sexual- trouxe dissabores ao franciscano Antônio Moser, um especialista na questão da sexualidade. Em 1984, junto com o teólogo Clodovis Boff, Moser foi afastado da PUC carioca pelo cardeal d. Eugênio Sales.
Por defender a descriminalização do aborto, a teóloga Ivone Gebara, que vive em Pernambuco, também foi punida com a pena de "silêncio", sendo obrigada a "refletir" sobre suas idéias na Europa. A mesma punição foi proposta a Leonardo Boff, na segunda vez em que foi advertido -quando então deixou a ordem franciscana. O cardeal Baggio deu-lhe a opção de ir para conventos nas Filipinas ou na Coréia, onde deveria guardar o obsequioso silêncio.
"A política interna da Igreja Católica ficou marcada, nesses anos todos, por uma violência cuidadosamente camuflada", escreveu o historiador Eduardo Hoonaert, um dos religiosos identificados com a Teologia da Libertação.
"As restrições à Teologia da Libertação não eram só teóricas, mas também práticas", diz o padre redentorista Márcio Fabri. "Começaram a pegar os expoentes que eram referências para essa teologia", explica. "A gente entende que isso era uma forma de chamar a atenção. Em termos estratégicos, seria uma forma de intimidar ou de desestimular que continuassem naquela direção".
Roma monitora a nomeação de religiosos para as faculdades de teologia por meio de um instrumento chamado "missio canonica". Corresponde a um "nihil obstat", uma espécie de "nada em contrário" fornecido pela censura eclesiástica do Vaticano. Márcio Fabri e Benedito Ferraro, teólogo que faz uma interpretação política da morte de Jesus, foram "desestimulados" por meio de "dificuldades" apresentadas na "missio canonica" ao cardeal Evaristo Arns. "D. Paulo tomou medidas muito transparentes para esclarecer", diz Fabri. Mas ele e Ferraro foram impedidos de ensinar teologia na faculdade da arquidiocese.
Muitos ex-padres foram proibidos de dar aula de teologia. Sem poder transmitir o conhecimento adquirido durante os muitos anos de estudo, esses religiosos sentem-se frustrados. Leigos menos qualificados podem ensinar teologia a seminaristas.
"João Paulo 2º realmente reforçou o setor conservador da igreja. Somos apenas tolerados. Diminuiu muito o número de religiosos e irmãs que moravam com os pobres", diz o irmão marista Antonio Cecchin, de Porto Alegre. Um dos religiosos que sofreram restrições no período de João Paulo 2º, esse descendente de italianos vive na periferia e se dedica a assistir catadores de papel.
Em 1973, Cecchin se engajou no movimento de ação católica ("catequese libertadora", antecessora da Teologia da Libertação). Na ditadura militar, foi fichado como "comunista" e preso junto com frei Beto. "Minha congregação fechou a porta, mas continuo juridicamente irmão marista."

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