São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ELEIÇÃO NOS EUA

Para o reputado jornalista Bob Woodward, percepção popular dos candidatos não corresponde aos fatos

"Kerry não é covarde e Bush não é estúpido"

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

"Quem pensa que John Kerry é um covarde está errado. O mesmo ocorre com aqueles que crêem que George W. Bush seja estúpido. O presidente é muito mais esperto do que pensam as pessoas. E Kerry é bem mais forte do que muitos imaginam. Conheço os dois pessoalmente e posso dizer isso com certeza."



A afirmação é de Bob Woodward, autor de "Plano de Ataque" (ed. Globo, 456 pags., R$ 48], lançado neste final de semana no Brasil. O livro narra os preparativos para a Guerra do Iraque a partir da ordem dada por Bush a seu secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, em novembro de 2001 (para que ele elaborasse os planos de uma ofensiva contra o regime de Saddam Hussein), até o início do conflito, em março de 2003.
Os preparativos, dirigidos pelo general Tommy Franks, chefe do comando de operações, e começados durante o conflito no Afeganistão, em 2001, foram mantidos em segredo até 2002. Repórter especial do "Washington Post", Woodward ficou célebre pelas investigações que, há 30 anos, realizou com Carl Bernstein sobre o caso Watergate, que levaram à renúncia do então presidente, Richard Nixon.
"Plano de Ataque" mostra os bastidores da Casa Branca durante o planejamento da invasão do Iraque e constata que o governo Bush estava dividido, com o secretário de Estado, Colin Powell, na linha de frente da oposição ao ataque. Segundo o livro, o Irã e a Coréia do Norte só entraram no chamado "eixo do mal" de Bush por acaso, já que o Iraque era o alvo mais importante para os EUA.
O texto de Woodward também afirma que a via diplomática só foi acionada quando os planos da guerra já estavam consolidados. Ademais, ninguém na administração americana, que acreditava piamente que Saddam tivesse armas de destruição em massa, previu os problemas do pós-guerra.
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.

Folha - O que o motivou a escrever "Plano de Ataque"?
Bob Woodward -
Queria mostrar ao povo americano o que realmente ocorreu. Há tantas coisas escondidas, tanto segredos, que é muito difícil entender o que se passou durante as reuniões na Casa Branca, que contaram com a presença de funcionários da CIA [agência de inteligência] e do Departamento de Estado, além do comando militar. Assim, busquei expor uma visão íntima sobre o modo como Bush decidiu ir à guerra contra Saddam.
Com isso, as pessoas podem ter uma noção mais clara sobre quem ele é como presidente e quais são seus valores vitais. A maneira como as pessoas reagem ao livro é interessante, pois alguns pensam que Bush é um presidente bastante determinado e concentrado em seu trabalho e outros crêem que o livro mostre que sua administração é um desastre.

Folha - Alguns críticos dizem, contudo, que seu livro é menos incisivo que "Cadeia de Comando", do jornalista Seymour Hersh, que, em abril, detalhou os horrores ocorridos na prisão iraquiana de Abu Ghraib, no que tange a críticas a Bush. Como o sr. vê essa análise?
Woodward -
Trata-se de livros totalmente diferentes, com objetivos distintos. "Plano de Ataque" é sobre o que fizeram as autoridades responsáveis pela tomada de decisões, sobretudo o presidente. Não acredito que Hersh tente dizer muito sobre as ações do presidente que levaram à guerra.

Folha - Quais são os valores de Bush que o sr. tentou explicitar?
Woodward -
O que quis mostrar em meu livro é que as ações de um presidente dependem muito de seu caráter. Podemos dizer que a história de 16 meses de preparativos militares, de operações secretas da CIA e de diplomacia na ONU tem muita relação com a personalidade de Bush.
Há muitas histórias interessantes. Por exemplo, Powell disse ao presidente que, se invadissem o Iraque, os EUA seriam responsáveis pela situação em que o país ficaria após a deposição de Saddam. Muitos analistas dizem que, naquele momento, o presidente deveria ter abandonado sua intenção de invadir o país, mas sabemos que ele não fez isso.
Outros analistas afirmam que o governo foi à ONU e buscou privilegiar a via diplomática, porém isso não surtiu resultado. Essas pessoas dirão que Saddam era uma ameaça que tinha de ser neutralizada. Sabemos que a guerra foi incrivelmente controversa, e, como repórter, penso que é mais importante descrever o que realmente ocorreu, não tentar adivinhar os fatos ou analisá-los com base em informações que não obtive pessoalmente. Minha intenção foi, portanto, expor os fatos.

Folha - Muitos especialistas dizem que Saddam não representava uma verdadeira ameaça, como sustenta o governo Bush, e que a situação antes da guerra era melhor no Iraque que a existente hoje. Como o sr. analisa esse argumento?
Woodward -
É bem possível que eles tenham razão. A violência está por toda parte, pois criamos uma insurgência bastante forte. Isso poderá transformar-se num dos maiores erros geopolíticos de todos os tempos. Questionei o presidente a esse respeito e sobre o modo como a história julgará a guerra. Ele me disse que não conheceremos o julgamento histórico antes de nossa morte.
De fato, levará muito tempo para que possamos saber o real impacto da Guerra do Iraque. Bush já deixou claro que não tem dúvida no que se refere à necessidade de depor Saddam e que acredita que se tratasse da coisa certa a fazer. Por ora, tudo indica que foi um grande erro, principalmente porque as armas de destruição em massa não foram encontradas.

Folha - Não é irresponsável que o presidente do país mais poderoso do planeta aja dessa forma?
Woodward -
Não creio. Às vezes, o tempo muda o julgamento histórico de fatos que parecem irrefutáveis. Há 50 anos, muita gente dizia que o presidente [Harry] Truman era um idiota e um louco, mas hoje ele é considerado um dos grandes presidentes dos EUA.
Às vezes, um presidente tem de manter um curso que não parece correto para os outros, mas que ele acredita ser o melhor para o país. Indubitavelmente, sua atitude pode revelar-se incorreta, no entanto ele tem de ser coerente.

Folha - Para um presidente como Bush, o sr. crê que a guerra tenha sido um erro?
Woodward -
Não, para ele não, pois a Casa Branca pensava que Saddam tivesse armas proibidas. Pode ser que, em cinco anos, a situação esteja estabilizada no Iraque, com menos terror e mais democracia. Se isso ocorrer, quem dirá que a guerra foi um erro?
Por outro lado, se a instabilidade e a violência aumentarem no Iraque, e o país tiver um novo ditador, perceberemos, então, que a guerra foi efetivamente um erro.

Folha - O que o sr. pensa de acusações feitas por pessoas como Michael Moore, que afirmam que os únicos objetivos da guerra foram o petróleo e o favorecimento de algumas empresas americanas, como a Halliburton, que, de 1995 a 2000, foi presidida por Dick Cheney, vice-presidente dos EUA?
Woodward -
Sem sombra de dúvida, Moore não tem a menor noção do que está falando. Ele tem uma visão enviesada de política externa e do jogo político em Washington. Algumas de suas acusações são ridículas, outras têm fundamento. Não sei se ele é tão popular quanto parece ser, porém ele fala coisas que muita gente quer ouvir. No sistema democrático americano, Moore tem o direito de dizer o que quiser.

Folha - Como o sr. interpreta a recuperação de Kerry nas pesquisas após o primeiro debate?
Woodward -
Creio que isso possa ser uma mudança significativa. Muitos eleitores lembrarão as imagens do presidente nervoso durante o debate, mostrando certo desconforto com a situação. Se isso ocorrer, Kerry poderá lucrar ainda mais eleitoralmente. Certamente, os americanos não esquecerão a reação de Bush às críticas de Kerry. Talvez o debate seja lembrado apenas por isso, não por seu conteúdo.
Não acredito em pesquisas. Assim, não gostaria de comentar números. Todavia acredito que se trate de uma disputa muito dura, e não podemos pensar que um debate mudará totalmente a situação. Por outro lado, ele poderá transformar-se no ponto de inflexão da corrida eleitoral.

Folha - Qual é sua opinião sobre a recente mudança de estratégia de Kerry, que, após o primeiro debate, passou a concentrar-se em temas domésticos, como o desemprego?
Woodward -
Ainda creio que o Iraque seja a questão mais importante da campanha. Afinal, trata-se de uma questão moral. As pessoas se preocupam muito com temas morais, embora a situação econômica também influa nas decisões do eleitorado americano.
A iniciativa de travar uma guerra é muito grave e define o modo como o país é visto internacionalmente. Sabemos que, em boa parte do mundo, incluindo no Brasil, a imagem americana ficou bastante manchada. Isso pode ser decisivo na maneira como os americanos vêem suas próprias ações e seu próprio país.

Folha - O sr. realmente acredita que o eleitorado americano venha a escolher seu candidato com base numa questão moral, não em sua própria situação econômica?
Woodward -
Não penso que a questão moral seja a única razão por que o Iraque está no centro da campanha. Precisamos observar esse fato à luz do 11 de Setembro e de todo o contexto de insegurança que tem marcado o cotidiano dos americanos. Ninguém sabe onde nem quando os terroristas atacarão novamente, mas a ameaça faz que as pessoas se questionem a respeito de quem lidera o país neste tempo de guerra.

Folha - Com base em sua experiência em Washington, é verossímil a acusação dos democratas de que os republicanos e o governo estão tentando dificultar o acesso de certas comunidades à votação?
Woodward -
Não fiz nenhuma reportagem independente sobre essa acusação. Não posso, portanto, pronunciar-me a esse respeito. Meu foco hoje é o Iraque. Desde o tempo do Watergate, na década de 70, busco ir aos fatos para escrever uma história. Assim, não posso falar sobre o tema. Por outro lado, devo afirmar que tive acesso a todos os documentos que quis consultar sobre a decisão de fazer a guerra contra Saddam.

Folha - Como o 11 de Setembro mudou a política em Washington?
Woodward -
A política externa mudou e passou a ser o centro das atenções. Com isso, Bush pode dizer que a ameaça tem de ser atacada antes de sua concretização. O 11 de Setembro permitiu a existência da Guerra do Iraque. Ambos mudaram a cena política. A campanha eleitoral é, em grande parte, sobre a maneira como os EUA podem proteger-se.

Folha - Kerry é tão capaz de defender os EUA quanto Bush?
Woodward -
Ele é preparado e bem informado, além de ter uma personalidade forte. Quem pensa que ele é um covarde está errado. O mesmo ocorre com aqueles que crêem que Bush seja estúpido. O presidente é muito mais esperto do que pensam as pessoas. E Kerry é bem mais forte do que muitos imaginam. Conheço os dois pessoalmente e posso dizer isso com certeza.

Texto Anterior: Artigo: O segundo round
Próximo Texto: Iraque sob tutela: EUA querem treinar mais 40 mil militares no Iraque
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.