São Paulo, domingo, 10 de outubro de 2004

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ARTIGO

O segundo round


Quatro em cada dez americanos ainda acham que o Iraque organizou os ataques ao World Trade Center

Bush estava preparado e saiu-se bem no tema ambiental, que devia deixar Kerry mais à vontade

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Foi com estas palavras que os canais nacionais americanos anunciavam o segundo debate da campanha presidencial. A frase traduz o embate de uma das eleições presidenciais mais polarizadas dos Estados Unidos. Da Pensilvânia ao Oregon, nos Estados de resultado mais incerto do país, tem havido um número recorde de novas inscrições de eleitores. O primeiro encontro já havia registrado uma forte audiência de 63 milhões de telespectadores. Os debates entre os candidatos a vice-presidente são geralmente negligenciados. Mas, desta vez, Dick Cheney e John Edwards atraíram, na sua primeira discussão, perto de 44 milhões de telespectadores. Quase tanto quanto os que assistiram ao primeiro debate presidencial entre Bush e Gore nas eleições de 2000. Sexta-feira, apesar de uma noitada importante do campeonato de beisebol, milhões de telespectadores acompanharam 90 minutos de discussões ininterrompidas entre Bush e Kerry.
Tanto um como o outro estavam sob pressão quando chegaram para o debate no auditório da Universidade Washington, em Saint Louis (Missouri). Vitorioso no primeiro debate, Kerry devia preocupar-se em confirmar as expectativas favoráveis que despertara entre os eleitores nos dias anteriores. Bush, que derrapou no primeiro debate e perdeu a vantagem conservada nas sondagens há várias semanas, precisava reverter urgentemente esse quadro.
Os dois candidatos têm expressões faciais características. Kerry é mais posudo e pode parecer mais presidencial. Mas, com seu queixo de galocha, arvora às vezes um ar atônico, meio apalermado, como Laurel, o Magro de "O Gordo e o Magro". Desta vez Bush estava mais à vontade, andando pelo auditório com sua "language" relaxada. Como de hábito, começa suas frases enfáticas com um meio gemido e encerra sua fala com um sorriso à la De Niro, que pode parecer acafajestado ou arguto, conforme o gosto do telespectador-eleitor.
Há ainda algo mais paradoxal. Bush, vindo de família muito rica, nascido no Connecticut (Costa Leste), diplomado em Yale e Harvard, filho de um ex-presidente e neto de um senador do Connecticut, consegue a proeza de passar-se por texano autêntico, daqueles que se contenta com dois blue-jeans e uma dúzia de vacas. Desse modo, quando Bush aparece jogando golfe (esporte de rico) parece apenas um político descontraído e esportivo. Mas, se Kerry é fotografado fazendo windsurf (esporte banal) nas beiras dos lago e dos litorais americanos, leva logo jeito de esnobe. Kerry sabe que isso não tem mais jeito e toma cuidado para falar o nome certo das pessoas que o interrogaram durante o debate. Bush também sabe que pode falar sem complexos e que quase ninguém notou que, em certa altura, ele chamou o senador Kerry de "Kennedy".
O espectro da guerra no Iraque se fez sentir ao longo da noite, apesar da decisão dos organizadores de introduzir questões sobre a política interna americana. Não há como escapar das manipulações de um governo que proclama alertas antiterroristas, obscurecendo a percepção dos americanos: 40% entre eles ainda acham que o Iraque organizou os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono.
O recrutamento obrigatório vai voltar?, perguntou um jovem eleitor. O fato é que há 138.000 soldados americanos no Iraque. Mais soldados estão expostos aos ataques iraquianos por mais tempo do que havia sido previsto. Bush diz que o recrutamento continuará submetido ao voluntariado. Mas Kerry respondeu que já está havendo um recrutamento disfarçado e marcou um ponto ao afirmar que a situação no Iraque continua caótica e perigosa. "É o que se vê todas as noites na televisão", completou.
Só depois de uma hora de debate Kerry conseguiu levar a discussão para o tema da perda de postos de trabalho e do desemprego nos Estados Unidos. Ele insistiu na crítica aos cortes de impostos promovidos por Bush, voltando repetidamente ao assunto. O motivo da ênfase está nos dados de uma série de estudos já publicados e bem explicados por Benjamin M. Friedman, economista de Harvard, no último número do "New York Review of Books": os cortes de impostos de Bush favoreceram os americanos mais ricos. Enquanto as faixas mais baixas de contribuintes tiveram ganhos de 2,3% depois das reduções de impostos, os que compõem a faixa de 1% mais ricos beneficiaram-se de um aumento de 10,1% em sua renda anual.
Bush estava desta vez mais bem preparado e saiu-se bem no tema do meio ambiente que, em princípio, devia deixar Kerry mais à vontade. Também ficou claro que nas questões relativas ao aborto e às pesquisas científicas com células-tronco, Bush estava mais à vontade quando dizia "não", do que Kerry quando dizia "sim"
Num procedimento pouco seguido na Europa e inexistente no Brasil, os pontos quentes do debate são retomados no dia seguinte. Especialistas e novos dados vêm corroborar ou desmentir o que um ou outro candidato disseram. No jornal da NBC, às 7h de sábado, ficou-se sabendo que Bush ao contrário do que ele pretendeu, era, sim, sócio de uma madeireira e declarou seus ganhos como pequeno proprietário. Parece besteira, mas o fato trouxe de volta os rolos da vida de Bush como empresário no Texas.

Luiz Felipe de Alencastro é professor titular da Universidade de Paris-Sorbonne e pesquisador visitante da Universidade Brown (EUA).


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