São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004 |
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ARTIGO Interesses dos EUA na AL dependem de Lula
PETER HAKIM
Embora a maior parte dos líderes latino-americanos se queixe
de que os Estados Unidos perderam o interesse na região depois
dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, Washington cortejou o presidente do Brasil ao
longo de todo o ano passado.
Poucas semanas depois de ter sido eleito, Luiz Inácio Lula da Silva
foi convidado para conhecer o
presidente George W. Bush na
Casa Branca. Voltou a Washington em junho de 2003 para um encontro de cúpula com Bush. Até
então, era o único chefe de Estado
a expressar publicamente sua
oposição à Guerra do Iraque e ser
recebido na Casa Branca.
A única maneira de considerar concessões como as que o Brasil deseja seria em negociações mundiais, com participação da Europa e do Japão. Mas não houve avanço nas negociações multilaterais em setembro de 2003, na reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Cancún, México. A reunião foi suspensa prematuramente quando os países chegaram a um impasse sobre diversas questões, entre as quais os subsídios à agricultura. Robert Zoellick, o representante do governo norte-americano para assuntos de comércio internacional, e Celso Amorim, chanceler e principal negociador brasileiro, imputaram à inflexibilidade dos governos brasileiro e norte-americano, de parte a parte, a culpa pelo fracasso. Ainda que observadores experientes tenham sugerido que os dois lados não estavam tão distantes em suas posições e poderiam ter chegado a um acordo se persistissem nas negociações, o colapso da reunião de Cancún causou um revés, mesmo que temporário, para as relações comerciais entre o Brasil e os Estados Unidos e para as chances de criar a Alca. O Brasil subsequentemente alegou que deseja "negociações, e não confronto" quanto às questões comerciais, mas propõe como base de discussão uma versão leve da Alca que nem os Estados Unidos nem a maior parte dos potenciais parceiros latino-americanos consideram atraente. Da mesma maneira que os norte-americanos desejam deixar a agricultura para as negociações mundiais, o Brasil quer fazer o mesmo com alguns itens primordialmente importante para os EUA, como as concorrências públicas, propriedade intelectual e o comércio de serviços. Se os Estados Unidos e o Brasil, no momento co-presidentes das negociações da Alca, não conseguirem chegar a um acordo dentro do prazo atual, que se esgota em dezembro de 2004, é provável que as discussões sejam prorrogadas. Caso os dois países se frustrem com as táticas de negociação de parte a parte, no entanto, as negociações da Alca podem desabar de maneira acrimoniosa. Guerra ao terror Outra questão espinhosa para as relações entre os Estados Unidos e o Brasil é a guerra que Washington está travando contra o terrorismo. Ainda que o Brasil tenha apoiado os EUA após o 11 de Setembro, mais tarde veio a se tornar um dos mais severos críticos, na região, da guerra. Washington em larga medida vem ignorando as objeções de Brasília, até agora, mas fingir-se de surdo fica muito mais difícil a partir deste ano, em que o Brasil entra no Conselho de Segurança da ONU com mandato por dois anos. As questões cruciais envolvem determinar se os Estados Unidos continuarão a aceitar sem reação as críticas brasileiras, impedindo que elas afetem as demais partes da relação bilateral, e se o Brasil vai intensificar suas críticas ou moderá-las. Cuba é outra questão quanto à qual os dois países não encontram posição comum. No ano passado, tanto nas Nações Unidas quanto na OEA (Organização dos Estados Americanos), o Brasil se recusou a criticar o tratamento brutal que Cuba dispensa aos dissidentes e muito menos a endossar resoluções norte-americanas condenando o histórico chocante de Fidel Castro no que tange ao respeito aos direitos humanos. Durante uma visita à ilha em setembro de 2003, Lula deixou claro que pretendia manter sua antiga amizade pessoal com Fidel e se recusou a tratar de quaisquer questões de política local, em seu encontro com ele, e a se encontrar com dissidentes locais. Lula aparentemente levou em conta as sensibilidades norte-americanas, no entanto, ao limitar sua visita a um único dia e ao pedir que demonstrações contra os Estados Unidos fossem evitadas. As relações brasileiras com Havana podem irritar Washington, mas é improvável que causem séria fricção, especialmente porque a importância de Cuba para a política externa dos Estados Unidos vem-se reduzindo. O envolvimento brasileiro com a Venezuela, por outro lado, deve ser um aspecto mais importante das relações entre EUA e Brasil. Ao longo do último ano, o Brasil presidiu o Grupo de Amigos da Venezuela, um grupo de seis países que inclui os Estados Unidos, e instou o governo e os insurgentes venezuelanos a resolver suas diferenças políticas por vias pacíficas, realizando um referendo, nos termos da Constituição, sobre a continuação do mandato do presidente Hugo Chávez. Ao mesmo tempo, porém, Lula se envolveu em negociações diretas com o governo Chávez para fomentar as relações econômicas bilaterais e uma maior integração entre os países sul-americanos. O Brasil conseguiu administrar o precário equilíbrio de sua posição até agora, mas, caso a situação se deteriore na Venezuela, Brasília pode ter dificuldades em persistir nos dois cursos ao mesmo tempo sem alienar Washington.
Os Estados Unidos deveriam estar satisfeitos com a mudança na abordagem do governo brasileiro com relação à Colômbia. Ainda que esteja avançando com cautela e continue hesitante quanto ao envolvimento norte-americano, o Brasil demonstrou maior apoio às iniciativas de segurança do presidente Álvaro Uribe e reconheceu, a contragosto, que o seu governo talvez precise de ajuda das Forças Armadas norte-americanas. A virada na política brasileira reflete, em larga medida, as preocupações de Brasília quanto à violência que se espalha pela região amazônica e à disparada no uso de drogas e na criminalidade em grandes cidades brasileiras. Mesmo assim, as autoridades do governo brasileiro hesitam diante da presença de tropas norte-americanas em um país vizinho. Lula sinalizou sua preocupação quanto ao papel dos Estados Unidos, bem como quanto às aspirações regionais crescentes do Brasil, ao convidar Uribe a depender mais do apoio brasileiro e menos do norte-americano. O governo Lula também ampliou os esforços para transformar o Brasil em líder regional ao encorajar os planos para fazer do Mercosul um pilar central da política externa brasileira. A Casa Branca de Clinton se irritava com essas iniciativas, mas em geral escolhia ignorá-las. O governo Bush parece reconhecer que o Brasil, em função de suas dimensões e influência, deveria realmente ocupar um lugar especial na América do Sul. Não é claro ainda, porém, que dose de iniciativa Washington está disposta a tolerar da parte dos brasileiros. O teste surgirá quando as ambições brasileiras desafiarem diretamente os objetivos ou interesses políticos norte-americanos na região. Se, por exemplo, ameaçarem bloquear o acordo da Alca, prejudicarem a resolução do enrosco na Venezuela ou provocarem oposição mais ampla à assistência militar que os EUA prestam à Colômbia. Muitos em Washington se deixaram irritar pelo que vêem como papel destrutivo do Brasil na reunião da OMC em Cancún. Incomodam-se, também, com a relação amistosa entre Lula e Fidel e pelas críticas constantes do presidente brasileiro à política norte-americana para o Iraque. A maior parte dos brasileiros, em contraste, apóia a posição de seu governo quanto a todas essas questões. Não importa que assunto esteja em jogo, as questões centrais são sempre as mesmas: que medida de independência e dissidência os Estados Unidos aceitarão da parte do Brasil? Até que ponto o Brasil está preparado para acomodar as opiniões e os interesses dos EUA? Até agora, o comércio vem sendo a única questão a provocar fricção aberta e potencialmente prejudicial entre os dois países. Eles conseguiram cooperar, pelo menos minimamente, quanto a problemas espinhosos como a Venezuela e a Colômbia, e foram capazes de aceitar a retórica dura e evitar desentendimentos públicos quanto a outros temas, como Cuba e a Guerra do Iraque. E ainda que tenham antecedentes, estilos pessoais e perspectivas políticas extremamente distintas, os dois presidentes aparentemente desenvolveram respeito sincero um pelo outro. Reforçar as relações O governo Bush deveria levar adiante seu bom começo, reforçando as relações amistosas entre o Brasil e os Estados Unidos. Seria bom, politicamente, solicitar sistematicamente as opiniões brasileiras sobre uma ampla gama de problemas relevantes para o hemisfério e levá-las a sério. Os Estados Unidos deveriam também tentar colocar em destaque as oportunidades de cooperação com o Brasil. Washington e Brasília há muito se vem concentrando principalmente em uma "agenda negativa" na solução de suas diferenças, em lugar de se dedicar à exploração de oportunidades e interesses compartilhados. Recentemente, porém, os dois governos começaram a tentar estabelecer uma "agenda positiva", enfatizando questões como a saúde e a educação, a pobreza e ciência e tecnologia, quanto às quais tenham posições semelhantes. Mas nenhum desses projetos ofereceu, até agora, uma base convincente para cooperação significativa. Os dois países podem estar procurando no lugar errado, e podem ser modestos demais em suas ambições. A despeito de seus desacordos atuais, a política comercial e econômica é o ponto em que Brasil e Estados Unidos compartilham dos maiores interesses e aquele para o qual a cooperação traria melhores resultados. O Brasil jamais desafiou agressivamente os objetivos da política norte-americana na América Latina. Não questionou a visão norte-americana quanto aos acordos hemisféricos de livre comércio, maior cooperação para a segurança ou defesa coletiva da democracia; de fato, os brasileiros assumiram compromissos específicos de trabalhar com Washington em cada uma dessas áreas. No entanto, mais do que qualquer outro país latino-americano, é o Brasil que rejeita as idéias de Washington quanto à operação prática de propostas e iniciativas específicas. O Brasil é o único país da região que tem peso e independência suficientes para desafiar os Estados Unidos de maneira crível. Tradicionalmente, as diferenças entre Brasília e Washington não vêm sendo ideológicas ou políticas como acontece, por exemplo, no caso da Venezuela de Chávez. Comumente, a oposição brasileira é reflexo das idéias nacionais quanto à posição do Brasil entre os países mais importantes do mundo e de sua política interna complexa e muitas vezes errática. No seu primeiro ano de mandato, Lula conquistou apoio em todo o espectro político, em seu país e no exterior. Poucos outros líderes hoje, e certamente nenhum na América Latina, desfrutam de mais confiança entre os céticos e os oponentes da economia de mercado e do livre comércio. Como resultado, Lula pode fazer mais do que ninguém para reconstruir a confiança latino-americana nos programas de reforma de mercado e restaurar a credibilidade das políticas defendidas pelo FMI e pelo Banco Mundial. O progresso nessas frentes dependerá, acima de tudo, do sucesso de Lula em governar seu país com eficiência, ou seja, de sua capacidade para retomar o crescimento, criar empregos, levar adiante seus ambiciosos programas sociais e combater a intensificação do crime e da violência. Washington pode ajudar Lula se facilitar a ele a adoção de políticas benéficas a ambos os países. Concessões significativas quanto às tarifas agrícolas que afetem produtos brasileiros, por exemplo, podem bem dar ao governo de Lula o espaço de manobra necessário à aprovação de uma Alca mais robusta. Por outro lado, pressão escancarada pela assinatura do acordo, ou de outras medidas políticas e econômicas às quais o Brasil se oponha no momento, provavelmente teria maus resultados. Washington precisa se lembrar de que seus interesses no hemisfério dependem mais do sucesso econômico e político de Lula em seu país do que de conquistar a cooperação brasileira quanto a qualquer outra questão específica, não interessa o quão importante seja. Esta é uma versão editada do artigo publicado originalmente na edição janeiro/fevereiro de 2004 da revista "Foreign Affairs". Peter Hakim é presidente do Diálogo Interamericano, centro de análise política do hemisfério Ocidental sediado em Washington Texto Anterior: Coréia do Norte: Missão dos EUA realiza visita a central nuclear Próximo Texto: Entrevista: Mundo é ingrato com os EUA, diz Hanson Índice |
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