São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004

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ARTIGO

Interesses dos EUA na AL dependem de Lula

Luke Frazza-23.set.2003/France Presse
Sob o olhar do secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, o presidente dos EUA, George W. Bush, fala com o presidente Lula


PETER HAKIM

Embora a maior parte dos líderes latino-americanos se queixe de que os Estados Unidos perderam o interesse na região depois dos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, Washington cortejou o presidente do Brasil ao longo de todo o ano passado. Poucas semanas depois de ter sido eleito, Luiz Inácio Lula da Silva foi convidado para conhecer o presidente George W. Bush na Casa Branca. Voltou a Washington em junho de 2003 para um encontro de cúpula com Bush. Até então, era o único chefe de Estado a expressar publicamente sua oposição à Guerra do Iraque e ser recebido na Casa Branca.
O governo Bush não tem tarefa mais importante no hemisfério do que cultivar uma relação de trabalho construtiva com o Brasil. Como maior e mais influente país latino-americano, o Brasil determinará, em larga medida, a capacidade dos Estados Unidos para levar adiante sua agenda de política externa na América Latina, e em algumas questões pode afetar o sucesso norte-americano também fora da região.
Ainda que o Brasil talvez não seja poderoso o bastante para formar política na América Latina, por mais que o deseje, muitas vezes demonstra músculo suficiente para ajudar ou obstruir substancialmente os planos norte-americanos na região.
Washington precisa da cooperação de Brasília para avançar quanto a questões regionais críticas, como a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), o confronto político cada vez mais grave na Venezuela e a violência do crime e da guerrilha na Colômbia. A voz do Brasil também tem peso quanto a questões internacionais mais amplas, como as negociações mundiais de comércio e a luta contra a Aids.
De maneira igualmente clara, o Brasil precisa da cooperação dos Estados Unidos para levar adiante suas agendas interna e internacional, particularmente para superar o crucial desafio do crescimento econômico, que requer acesso confiável aos mercados, capitais e tecnologia norte-americanos.

Assimetria de riquezas
O Brasil e os EUA estão envolvidos em disputas práticas quanto a interesses nacionais distintos, em larga medida devido à escancarada assimetria de riqueza e poder respectivos. Outros desacordos refletem perspectivas políticas e ideológicas divergentes entre a Casa Branca conservadora dos Estados Unidos e um governo brasileiro que, apesar de sua política econômica convencional, trata muitas questões de um ponto de vista esquerdista.
Os dois países muitas vezes estão em um limite difícil de definir, entre a cooperação e o confronto, quanto a diversos assuntos críticos. A qualidade da relação no futuro pode depender mais da capacidade para tolerar abordagens conflitantes do que do sucesso em perseguir interesses comuns.
O comércio pode ser a questão mais importante, porque é uma peça essencial para a visão dos Estados Unidos quanto à sua relação de longo prazo com a América Latina e o resto do mundo, e também interessa grandemente para o futuro econômico do Brasil. Washington e Brasília não encontram um consenso quanto à criação da Alca, a zona de livre comércio englobando 34 países que está sendo negociada desde 1994.
Lula descartou a Alca no começo de sua campanha presidencial, classificando-a como um plano norte-americano para anexar a América Latina. Ainda que tenha moderado sua retórica posteriormente, seu governo, com o poderoso Ministério das Relações Exteriores, continua abertamente cético quanto às ambições dos Estados Unidos para a Alca e vem repetindo que a integração econômica da América do Sul é uma prioridade maior.
A posição de Lula quanto à Alca reflete a situação política do seu país. Não existe um forte eixo de interesses no Brasil que apóie entusiasticamente o livre comércio no hemisfério, nem sequer as lideranças empresariais brasileiras estão unidas quanto ao tema.
O Brasil diz que se recusará a endossar o acordo da Alca a menos que os EUA reduzam seus imensos subsídios aos fazendeiros norte-americanos e reconsiderem suas políticas antidumping e suas tarifas compensatórias e punitivas, que representam severas barreiras para as exportações brasileiras. Essas questões, no entanto, não serão fáceis de resolver durante as negociações da Alca. Washington também está sob o jugo dos interesses políticos internos, que se opõem à suspensão das proteções existentes.


Ainda que o Brasil talvez não seja poderoso o bastante para formar política na América Latina, muitas vezes demonstra músculo suficiente para ajudar ou obstruir os planos americanos na região


A única maneira de considerar concessões como as que o Brasil deseja seria em negociações mundiais, com participação da Europa e do Japão. Mas não houve avanço nas negociações multilaterais em setembro de 2003, na reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em Cancún, México. A reunião foi suspensa prematuramente quando os países chegaram a um impasse sobre diversas questões, entre as quais os subsídios à agricultura.
Robert Zoellick, o representante do governo norte-americano para assuntos de comércio internacional, e Celso Amorim, chanceler e principal negociador brasileiro, imputaram à inflexibilidade dos governos brasileiro e norte-americano, de parte a parte, a culpa pelo fracasso.
Ainda que observadores experientes tenham sugerido que os dois lados não estavam tão distantes em suas posições e poderiam ter chegado a um acordo se persistissem nas negociações, o colapso da reunião de Cancún causou um revés, mesmo que temporário, para as relações comerciais entre o Brasil e os Estados Unidos e para as chances de criar a Alca.
O Brasil subsequentemente alegou que deseja "negociações, e não confronto" quanto às questões comerciais, mas propõe como base de discussão uma versão leve da Alca que nem os Estados Unidos nem a maior parte dos potenciais parceiros latino-americanos consideram atraente.
Da mesma maneira que os norte-americanos desejam deixar a agricultura para as negociações mundiais, o Brasil quer fazer o mesmo com alguns itens primordialmente importante para os EUA, como as concorrências públicas, propriedade intelectual e o comércio de serviços. Se os Estados Unidos e o Brasil, no momento co-presidentes das negociações da Alca, não conseguirem chegar a um acordo dentro do prazo atual, que se esgota em dezembro de 2004, é provável que as discussões sejam prorrogadas. Caso os dois países se frustrem com as táticas de negociação de parte a parte, no entanto, as negociações da Alca podem desabar de maneira acrimoniosa.

Guerra ao terror
Outra questão espinhosa para as relações entre os Estados Unidos e o Brasil é a guerra que Washington está travando contra o terrorismo. Ainda que o Brasil tenha apoiado os EUA após o 11 de Setembro, mais tarde veio a se tornar um dos mais severos críticos, na região, da guerra. Washington em larga medida vem ignorando as objeções de Brasília, até agora, mas fingir-se de surdo fica muito mais difícil a partir deste ano, em que o Brasil entra no Conselho de Segurança da ONU com mandato por dois anos.
As questões cruciais envolvem determinar se os Estados Unidos continuarão a aceitar sem reação as críticas brasileiras, impedindo que elas afetem as demais partes da relação bilateral, e se o Brasil vai intensificar suas críticas ou moderá-las.
Cuba é outra questão quanto à qual os dois países não encontram posição comum. No ano passado, tanto nas Nações Unidas quanto na OEA (Organização dos Estados Americanos), o Brasil se recusou a criticar o tratamento brutal que Cuba dispensa aos dissidentes e muito menos a endossar resoluções norte-americanas condenando o histórico chocante de Fidel Castro no que tange ao respeito aos direitos humanos.
Durante uma visita à ilha em setembro de 2003, Lula deixou claro que pretendia manter sua antiga amizade pessoal com Fidel e se recusou a tratar de quaisquer questões de política local, em seu encontro com ele, e a se encontrar com dissidentes locais.
Lula aparentemente levou em conta as sensibilidades norte-americanas, no entanto, ao limitar sua visita a um único dia e ao pedir que demonstrações contra os Estados Unidos fossem evitadas. As relações brasileiras com Havana podem irritar Washington, mas é improvável que causem séria fricção, especialmente porque a importância de Cuba para a política externa dos Estados Unidos vem-se reduzindo.
O envolvimento brasileiro com a Venezuela, por outro lado, deve ser um aspecto mais importante das relações entre EUA e Brasil. Ao longo do último ano, o Brasil presidiu o Grupo de Amigos da Venezuela, um grupo de seis países que inclui os Estados Unidos, e instou o governo e os insurgentes venezuelanos a resolver suas diferenças políticas por vias pacíficas, realizando um referendo, nos termos da Constituição, sobre a continuação do mandato do presidente Hugo Chávez.
Ao mesmo tempo, porém, Lula se envolveu em negociações diretas com o governo Chávez para fomentar as relações econômicas bilaterais e uma maior integração entre os países sul-americanos. O Brasil conseguiu administrar o precário equilíbrio de sua posição até agora, mas, caso a situação se deteriore na Venezuela, Brasília pode ter dificuldades em persistir nos dois cursos ao mesmo tempo sem alienar Washington.


O governo Bush deveria levar adiante seu bom começo, reforçando as relações amistosas. Seria bom, politicamente, solicitar as opiniões brasileiras sobre problemas relevantes, e levá-las a sério


Os Estados Unidos deveriam estar satisfeitos com a mudança na abordagem do governo brasileiro com relação à Colômbia. Ainda que esteja avançando com cautela e continue hesitante quanto ao envolvimento norte-americano, o Brasil demonstrou maior apoio às iniciativas de segurança do presidente Álvaro Uribe e reconheceu, a contragosto, que o seu governo talvez precise de ajuda das Forças Armadas norte-americanas.
A virada na política brasileira reflete, em larga medida, as preocupações de Brasília quanto à violência que se espalha pela região amazônica e à disparada no uso de drogas e na criminalidade em grandes cidades brasileiras. Mesmo assim, as autoridades do governo brasileiro hesitam diante da presença de tropas norte-americanas em um país vizinho. Lula sinalizou sua preocupação quanto ao papel dos Estados Unidos, bem como quanto às aspirações regionais crescentes do Brasil, ao convidar Uribe a depender mais do apoio brasileiro e menos do norte-americano.
O governo Lula também ampliou os esforços para transformar o Brasil em líder regional ao encorajar os planos para fazer do Mercosul um pilar central da política externa brasileira. A Casa Branca de Clinton se irritava com essas iniciativas, mas em geral escolhia ignorá-las. O governo Bush parece reconhecer que o Brasil, em função de suas dimensões e influência, deveria realmente ocupar um lugar especial na América do Sul. Não é claro ainda, porém, que dose de iniciativa Washington está disposta a tolerar da parte dos brasileiros.
O teste surgirá quando as ambições brasileiras desafiarem diretamente os objetivos ou interesses políticos norte-americanos na região. Se, por exemplo, ameaçarem bloquear o acordo da Alca, prejudicarem a resolução do enrosco na Venezuela ou provocarem oposição mais ampla à assistência militar que os EUA prestam à Colômbia.
Muitos em Washington se deixaram irritar pelo que vêem como papel destrutivo do Brasil na reunião da OMC em Cancún. Incomodam-se, também, com a relação amistosa entre Lula e Fidel e pelas críticas constantes do presidente brasileiro à política norte-americana para o Iraque.
A maior parte dos brasileiros, em contraste, apóia a posição de seu governo quanto a todas essas questões. Não importa que assunto esteja em jogo, as questões centrais são sempre as mesmas: que medida de independência e dissidência os Estados Unidos aceitarão da parte do Brasil? Até que ponto o Brasil está preparado para acomodar as opiniões e os interesses dos EUA?
Até agora, o comércio vem sendo a única questão a provocar fricção aberta e potencialmente prejudicial entre os dois países. Eles conseguiram cooperar, pelo menos minimamente, quanto a problemas espinhosos como a Venezuela e a Colômbia, e foram capazes de aceitar a retórica dura e evitar desentendimentos públicos quanto a outros temas, como Cuba e a Guerra do Iraque. E ainda que tenham antecedentes, estilos pessoais e perspectivas políticas extremamente distintas, os dois presidentes aparentemente desenvolveram respeito sincero um pelo outro.

Reforçar as relações
O governo Bush deveria levar adiante seu bom começo, reforçando as relações amistosas entre o Brasil e os Estados Unidos. Seria bom, politicamente, solicitar sistematicamente as opiniões brasileiras sobre uma ampla gama de problemas relevantes para o hemisfério e levá-las a sério.
Os Estados Unidos deveriam também tentar colocar em destaque as oportunidades de cooperação com o Brasil. Washington e Brasília há muito se vem concentrando principalmente em uma "agenda negativa" na solução de suas diferenças, em lugar de se dedicar à exploração de oportunidades e interesses compartilhados. Recentemente, porém, os dois governos começaram a tentar estabelecer uma "agenda positiva", enfatizando questões como a saúde e a educação, a pobreza e ciência e tecnologia, quanto às quais tenham posições semelhantes.
Mas nenhum desses projetos ofereceu, até agora, uma base convincente para cooperação significativa. Os dois países podem estar procurando no lugar errado, e podem ser modestos demais em suas ambições. A despeito de seus desacordos atuais, a política comercial e econômica é o ponto em que Brasil e Estados Unidos compartilham dos maiores interesses e aquele para o qual a cooperação traria melhores resultados.
O Brasil jamais desafiou agressivamente os objetivos da política norte-americana na América Latina. Não questionou a visão norte-americana quanto aos acordos hemisféricos de livre comércio, maior cooperação para a segurança ou defesa coletiva da democracia; de fato, os brasileiros assumiram compromissos específicos de trabalhar com Washington em cada uma dessas áreas.
No entanto, mais do que qualquer outro país latino-americano, é o Brasil que rejeita as idéias de Washington quanto à operação prática de propostas e iniciativas específicas. O Brasil é o único país da região que tem peso e independência suficientes para desafiar os Estados Unidos de maneira crível. Tradicionalmente, as diferenças entre Brasília e Washington não vêm sendo ideológicas ou políticas como acontece, por exemplo, no caso da Venezuela de Chávez. Comumente, a oposição brasileira é reflexo das idéias nacionais quanto à posição do Brasil entre os países mais importantes do mundo e de sua política interna complexa e muitas vezes errática.
No seu primeiro ano de mandato, Lula conquistou apoio em todo o espectro político, em seu país e no exterior. Poucos outros líderes hoje, e certamente nenhum na América Latina, desfrutam de mais confiança entre os céticos e os oponentes da economia de mercado e do livre comércio. Como resultado, Lula pode fazer mais do que ninguém para reconstruir a confiança latino-americana nos programas de reforma de mercado e restaurar a credibilidade das políticas defendidas pelo FMI e pelo Banco Mundial. O progresso nessas frentes dependerá, acima de tudo, do sucesso de Lula em governar seu país com eficiência, ou seja, de sua capacidade para retomar o crescimento, criar empregos, levar adiante seus ambiciosos programas sociais e combater a intensificação do crime e da violência.
Washington pode ajudar Lula se facilitar a ele a adoção de políticas benéficas a ambos os países. Concessões significativas quanto às tarifas agrícolas que afetem produtos brasileiros, por exemplo, podem bem dar ao governo de Lula o espaço de manobra necessário à aprovação de uma Alca mais robusta. Por outro lado, pressão escancarada pela assinatura do acordo, ou de outras medidas políticas e econômicas às quais o Brasil se oponha no momento, provavelmente teria maus resultados. Washington precisa se lembrar de que seus interesses no hemisfério dependem mais do sucesso econômico e político de Lula em seu país do que de conquistar a cooperação brasileira quanto a qualquer outra questão específica, não interessa o quão importante seja.

Esta é uma versão editada do artigo publicado originalmente na edição janeiro/fevereiro de 2004 da revista "Foreign Affairs".

Peter Hakim é presidente do Diálogo Interamericano, centro de análise política do hemisfério Ocidental sediado em Washington



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