São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004

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ENTREVISTA

Intelectual conservador com trânsito na Casa Branca afirma que, por causa disso, americanos podem decidir se isolar

Mundo é ingrato com os EUA, diz Hanson

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Cresce nos EUA uma forte tendência ao isolacionismo, em que pesem os efeitos globalizados da política de combate ao terrorismo do governo George W. Bush.
É o que afirma Victor Davis Hanson, 50, helenista, professor da Universidade da Califórnia, autor de 14 livros e um dos mais efusivos polemistas do conservadorismo norte-americano.
Hanson, um dos intelectuais que frequentam a Casa Branca, não associa o risco de isolacionismo só à vitória de um democrata com o perfil de Howard Dean nas eleições presidenciais deste ano.
Há a soma de fatores mais difusos, como os efeitos da reconstrução do Iraque no bolso do contribuinte e a sensação de que há muita ingratidão por parte de tradicionais aliados europeus.
Eis os principais trechos de sua entrevista à Folha.

 

Folha - É possível prever o que ocorrerá na sequência da guerra no Iraque? O país "exportará" democracia ao mundo árabe?
Victor Hanson -
Essa é a grande pergunta de nossos dias. Antes víamos as reformas democráticas no Oriente Médio como o último objetivo, não o primeiro. A "realpolitik" amoral nos levava a deixar que as ditaduras nos vendessem petróleo e afastassem seus países do comunismo. Mas o raciocínio não funciona mais no pós-Guerra Fria. E ainda por cima cria patologias como as que levaram ao 11 de Setembro.
É irônico que a atual política externa dos EUA, amplamente criticada pelas esquerdas, constitua aquilo que antigamente os radicais denominavam de libertação nacional. Derrubar autocracias odiosas como as do Panamá, de Granada, da Sérvia e do Afeganistão e substituí-las por governos consensuais supõem que os EUA se tornaram hoje uma força "radical" e bastante revolucionária no mundo contemporâneo.

Folha - Em um de seus livros o sr. disse que responder à violência com violência é por vezes a única opção moral. Há a seu ver uma nova ética em formação?
Hanson -
É possível que a cultura terapêutica amoral esteja hoje bem mais exposta àquilo que ela reconditamente sempre foi. Afinal, quantos xiitas a mais seriam mortos por Saddam Hussein? Quantos cadáveres da Bósnia e de Kosovo se somariam aos 200 mil que Milosevic produziu?
A questão não está na guerra entre o bem e o mal, mas entre algo ruim e algo melhor. A busca da perfeição utópica nos conduz à paralisia e à moralidade dos mortos. A maior parte dos inocentes que pereceram no século 20 -o mais sanguinário dos séculos- não tombou como soldados, mas como vítimas de Stálin, Hitler, Mao ou Pol Pot. Voltamos recentemente a assistir ao mesmo filme em Ruanda. Até que ponto era moral fazer discursos enquanto milhões estavam morrendo?

Folha - Texto seu na "National Review" esboça um retrato dos EUA profundamente divididos. Como questões como Iraque e Afeganistão serão tratadas se o democrata Dean se eleger presidente?
Hanson -
Seriam muito impropriamente tratadas. Os terroristas se convenceriam de que bastaria alguns meses de seguidos atentados para que os EUA se transformassem num novo Líbano, capitulando diante das forças que provocaram o 11 de Setembro. As críticas que os EUA recebem em países estrangeiros fazem parte do jogo da política internacional. Mas, creia-me, caso Dean se eleja esses países ficariam aterrorizados com sua inconsistência, sua tendência ao isolacionismo e sua abdicação da responsabilidade.

Folha - Será que o contribuinte norte-americano não se cansará desse papel de "hiperpotência"?
Hanson -
E isso ocorre quando gastamos US$ 100 bilhões na reconstrução do Iraque, e as TVs árabes glorificam os que assassinam americanos que lhes reconstroem escolas. Isso fere os americanos, sobretudo quando a retórica é infantil e parte de sociedades autocráticas e brutais. Eu me preocupo com um novo isolacionismo. Há uma crescente mentalidade em meu país que se resume assim: "O mundo é terrível e inóspito; não vale a pena. Vamos ficar em casa e deixar que eles cuidem de seus próprios piolhos".

Folha - Essa tendência seria própria ao Partido Democrata?
Hanson -
Os democratas tentaram com algum sucesso propagar tais idéias, formando uma estranha aliança com paleoconservadores e esquerdistas que se opunham à libertação do Iraque, com base na afirmação de que não valia a pena gastar dinheiro numa guerra e que 26 milhões de iraquianos não valiam tanto quanto um soldado americano.

Folha - Mas a ocupação do Iraque afeta negativamente a economia dos Estados Unidos.
Hanson -
Há um déficit orçamentário e comercial, há a queda do dólar. Muitos americanos se perguntam a razão pela qual continuamos a defender a Europa que nos esnoba, ou que mantenhamos déficits comerciais com países que interpretam isso como fraqueza e não magnanimidade. Creio que esse seja o grande problema que em breve será muito comentado.
O mundo poderá ter seu troco e receber um "adeus e boa sorte para todos!" Haveria nisso um erro terrível. O isolacionismo e o chauvinismo são reações emocionais, não racionais. Mas seríamos estúpidos caso não tivéssemos consciência de que esse ressentimento está crescendo entre nós.
Será que, por exemplo, o Brasil gostaria que a China ou o Irã, uma ditadura e uma teocracia, tivessem 7.000 ogivas nucleares e navegassem em seu litoral com essas armas?
O risco está na criação de um vazio mundial de liderança quando os americanos disserem "basta". O mundo no fundo tem sorte pelo fato de os EUA -e não a Alemanha nazista ou a URSS- exercerem essa missão.

Folha - Nunca foi tão profundo o fosso que separa os EUA de seus tradicionais aliados europeus. Aonde isso pode chegar?
Hanson -
Contrariamente ao que se acredita, isso não tem nada a ver com a administração Bush, tampouco com termos vazios ("unilateralismo" ou "hegemonia") que frequentam as declarações de intelectuais de uma Europa desarmada. Ela vê as instituições internacionais como instrumentos de pressão contra os Estados Unidos.
Lembremos que os europeus ficaram por dez anos com o holocausto sérvio nas mãos, e que os EUA resolveram o problema com sete semanas de bombardeio. Os europeus nunca fariam algo arriscado.

Folha - O sr. é excessivamente cruel com os europeus.
Hanson -
Creio que a Europa, com seu idealismo e utopias, é como um adolescente que sai com um carro e acredita que ele seja seu, por mais que sejam os pais que paguem a gasolina, o seguro e as prestações. Some-se a isso o fato de os Estados Unidos serem plutocráticos, em lugar de guiados por interesses de classe, como os europeus.
Recoloquemos 300 divisões soviéticas na Europa do leste e vejamos se o chanceler Schröder [premiê alemão] continuaria a se opor aos americanos.



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