|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Contra os poderes ocultos do Estado
ROBERTO ROMANO
Bobbio é um pensador que
prolonga, em nosso tempo, as
Luzes democráticas e laicas. Ele
nunca aceitou o domínio das seitas ideológicas ou religiosas.
Ainda em 2000, quando a Igreja Católica proclamou o "Jubileu
dos Políticos" e deu-lhes Thomas
Morus como patrono, o mestre
escreveu, com a elegância de
sempre, mas com estilete afiado,
contra o sumo pontífice. Acusou
o vencedor da União Soviética de
ser apenas "um perfeito papa da
Contra-reforma". A escolha do
mártir inglês foi macabra, disse
Bobbio, augurando dias péssimos para a república. A flecha
atingiu o alvo certo, visto que entre João Paulo 2º e o séquito de
Silvio Berlusconi existem muitas
afinidades eletivas.
Adversário de todos os lavadores de cérebros, da esquerda ou
direita, o filósofo estabeleceu
profícuos diálogos com pensadores que recusaram a via da "popularidade". Hans Kelsen, no seu
rol de autores prediletos, não
afasta Thomas Hobbes, Max Weber, Croce, Hegel, ao lado de clássicos, como Bodin e Maquiavel.
Bobbio nunca recusou o debate
com pessoas de todas as doutrinas políticas. Assim, manteve
correspondência com rígidos
stalinistas e com o sumo sacerdote do pensamento jurídico antiliberal, Carl Schmitt.
Respeitado em todos os meios
que frequentou pela sua permanente atitude ética, o sábio leitor
de Platão e de Aristóteles indicou, como poucos, as fraquezas
do regime democrático. No vigoroso estudo sobre "O Futuro da
Democracia", ele mostra que, em
tal regime, grupos organizados
açambarcam recursos públicos e
prejudicam a vida coletiva, o que
é possível constatar em todos os
Estados democráticos de hoje.
Mais importante ainda: neles, o
poder real se esconde na invisibilidade e usa o segredo para reprimir e controlar a cidadania. Defensor da imprensa livre, o jurista
sempre denunciou as artimanhas dos que odeiam a vida pública e se escondem nos palácios.
Finalmente, salienta Bobbio o
império dos técnicos e burocratas que travam as políticas públicas (saúde, educação), as quais
beneficiariam as populações.
Bobbio não se elevou contra o
patrocínio de são Thomas Morus
por acaso. Homem reto, ele não
admitia a política como paraíso
angélico, pois conheceu a fraqueza dos seres finitos em sua própria carne. Embora tenha lutado
com a resistência, confessou seu
encanto juvenil diante do fascismo. No escândalo programado
pela mídia sobre aquele fato, surgiu a carta que ele enviou a Mussolini, em que afirma devoção
pela causa autoritária. Humilhado, o pensador não perdeu sua
estatura, pois não procurou disfarçar o erro ou justificá-lo.
Liberal, Bobbio nunca se deixou embair pela cantilena que
preconiza a nocividade do Estado. Analista da corrupção política, ele aponta a instituição como
"um navio onde as águas surgem
em todos os cantos". Mas o barco
"deve ser renovado na sua integridade". Os poderes ocultos
(policiais, religiosos, econômicos, ideológicos), conclui, "devem ser expulsos de seus ninhos.
Não é possível que existam dois
Estados. O Estado é um só, o da
Constituição republicana. Fora
dele, existe apenas o anti-Estado
que deve ser abatido, começando
do teto e atingindo, se possível, os
fundamentos".
No Brasil, percebemos a importância dessas palavras, quando vemos políticos que devoram
a riqueza pública, juízes que
mancham suas togas, quadrilhas
que ousam exercer o controle de
corpos e almas.
No mundo e aqui, Bobbio será
uma ausência dolorida, ele que
pensou ensinando uma única
certeza: a dúvida.
Roberto Romano, 57, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp e autor de "Moral e Ciência - A
Monstruosidade no Século 18" (ed. Senac/São Paulo), entre outras obras.
Texto Anterior: Norberto Bobbio (1909 - 2003) Luiz Carlos Bresser Pereira: Democrata, liberal e mais: socialista Próximo Texto: Califórnia: Carisma move o governo Schwarzenegger Índice
|