São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004

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NORBERTO BOBBIO (1909-2003)

Pensador italiano, que morreu na última sexta-feira, tem sua obra analisada pelo economista Luiz Carlos Bresser Pereira e o professor de filosofia Roberto Romano

Democrata, liberal e mais: socialista

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

Norberto Bobbio foi um dos mais importantes filósofos políticos do século 20. Professor de filosofia do direito, combinou de forma extraordinária uma formação liberal com uma perspectiva democrática e socialista.
Seu liberalismo deveu muito a Benedetto Croce e a Luigi Einaudi, enquanto seu socialismo derivava em parte do pensamento marxista, mas sobretudo de seus precursores socialistas liberais, Carlo Rosselli e Piero Gobetti.
Dessa forma, ainda que fosse um pessimista, ou, como ele preferia se autodenominar, um realista, logrou algo que poderia parecer utópico: combinar as duas grandes ideologias que desde o século 19 disputaram a hegemonia no mundo moderno.
Bobbio foi um homem que viveu intensamente seu tempo e viu, afinal, sua participação política reconhecida quando foi eleito senador vitalício na Itália. Seus grandes inimigos foram os extremismos: o fascista e suas sobrevivências na Itália moderna, e o comunismo soviético, que ele não identificava a Marx.
Em 1993, minha admiração por sua obra e minha identificação com suas idéias socialistas-liberais levaram-me a retornar à minha primeira profissão, a de jornalista, e a viajar até Turim, onde sempre viveu, para entrevistá-lo.
Encontrei um homem afável e cheio de vigor. A entrevista durou cerca de duas horas e foi depois publicada pelo Mais!.
Entendia possível a combinação de liberalismo e socialismo, mas como uma forma de compromisso, em que as duas partes cedem um pouco. Para que haja acordo, nem o liberalismo nem o socialismo podem ser entendidos de forma radical.
O liberalismo político é legítimo e pode ser pleno, na medida em que defende as liberdades, os direitos civis, enquanto o liberalismo econômico deve ser limitado, para que haja espaço para a afirmação da justiça social. O socialismo, portanto, não pode significar a eliminação da propriedade privada, muito menos a estatização, mas certamente significa a defesa de uma maior igualdade e a afirmação dos direitos sociais através do Estado.
Bobbio sabia que nem liberais nem socialistas gostariam de suas idéias e prefeririam continuar o combate ideológico. Talvez por isso ele fosse cuidadoso em combinar as duas ideologias, acentuando o caráter de compromisso em que estava envolvido. Eu compreendo essa preocupação, mas, talvez porque não tenha vivido com tanta intensidade os combates entre liberais e socialistas, estou convencido de que essa combinação é mais do que um compromisso: é a afirmação sucessiva dos direitos civis, políticos e sociais.
O liberalismo também conflitou com a democracia, mas hoje poucos se lembram disso. Da mesma forma suponho que no futuro poucos lembrarão os conflitos entre o socialismo e o liberalismo. A cada uma dessas três ideologias correspondeu, historicamente, à afirmação de um dos três direitos de cidadania fundamentais: os direitos civis foram afirmados pelo liberalismo, os políticos, pela democracia, e os sociais, pelo socialismo.
Bobbio teve uma grande influência no Brasil. Hoje, outros autores dominam o debate filosófico-político. O tema central é a democracia deliberativa, que é defendida a partir de uma perspectiva político-liberal e progressista por esses dois grandes filósofos. Ora, essa perspectiva não é outra coisa senão a do socialismo-liberal de Bobbio, cuja obra continua uma fonte fundamental de conhecimento e inspiração para quem queira entender a realidade política do nosso tempo.


Luiz Carlos Bresser Pereira, 69, é professor de economia na FGV-SP. Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo FHC), além de ministro da Fazenda (governo Sarney).


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