|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Sem regras, Guantánamo julga seus presos
Desde que Obama reinstituiu comissões militares e anunciou mudanças, ainda não foi definido um novo manual de procedimento
Folha acompanhou audiência
de caso de sudanês detido em
2002 na qual ficou claro que
advogados ainda tateiam
para se adequar a mudanças
Brennan Linsley - 29.mar.10/Associated Press
|
|
Soldado americano em torre de vigilância da prisão de Guantánamo, cujo prazo de fechamento prometido por Obama já expirou
ANDREA MURTA
ENVIADA ESPECIAL A GUANTÁNAMO
Mais de dois meses após expirar o prazo inicial do presidente Barack Obama para o fechamento da prisão de Guantánamo, não são apenas os mais
de 180 suspeitos de terrorismo
ainda detidos na base americana que mostram que pouco
mudou. As polêmicas comissões militares já retomaram
atividades na ilha, funcionando
praticamente no mesmo sistema que um dia o democrata
chamou de "uma bagunça".
Na última quarta-feira, a Folha acompanhou a audiência
inaugural desses tribunais de
exceção em 2010, que analisou
o caso do sudanês Noor
Uthamn Muhammed.
Em vários momentos, advogados dos dois lados, e mesmo a
juíza, deixavam transparecer
dúvidas sobre como proceder.
Desde que Obama fez mudanças nos procedimentos em
maio de 2009, não foi criado
novo manual de regras para as
comissões, que funcionam basicamente pelos regulamentos
do manual de 2006, editado
ainda sob o governo de George
W. Bush, com algumas intervenções quase intuitivas que
indicam novos limites.
Para completar o fardo, a sessão de Noor ocorreu em um tribunal secreto originalmente
construído na ilha para abrigar
os julgamentos dos acusados
pelo 11 de Setembro. Em novembro, o secretário da Justiça
americano, Eric Holder, anunciou que eles ocorreriam num
tribunal federal de Nova York,
mas a Casa Branca vem dando
sinais de recuo diante da forte
oposição e não há palavra final.
Nessa sala sofisticada e moderna, o sudanês, um negro
franzino, de cabeça raspada e
barba grisalha pontiaguda, permaneceu praticamente imóvel
por duas horas. Ele chegou sem
algemas e com uniforme branco, o que indica que é considerado cooperante. Não reagiu
nem mesmo quando a juíza
afirmou que há tanto material
confidencial a ser revisto que
um julgamento não será possível antes de 2011 -ele está preso desde que foi capturado no
Afeganistão em 2002.
"A audiência foi mais uma
manifestação de tudo o que está errado com as comissões
desde sua criação", completou
Michael Berrigan, vice-conselheiro-chefe de defesa de réus
das comissões militares dos
EUA. "A verdade é que não há
regras. Já estamos na versão
4.0 das comissões, e daqui a
pouco virá a 4.1."
"O problema é que não sabemos o que esperar", afirmou
um advogado civil que visitava
seu cliente em Guantámo e falou sob condição de anonimato.
"Trabalho com acusados em
comissões há dois anos e já vi as
regras mudarem três vezes."
Nomenclatura
Quando abandonou sua intenção inicial de extinguir as
comissões militares, Obama
instituiu mudanças como uma
maior possibilidade de escolha
de advogados pelos acusados e
limites mais rígidos na utilização de testemunhos indiretos.
Também mudou a nomenclatura -acusados eram "combatentes inimigos ilegais" e agora
são "inimigos beligerantes não
privilegiados".
Informações podem ser resumidas e censuradas pela acusação antes de serem entregues
à defesa, desde que revistas por
um juiz para garantir precisão.
"A autoridade que está em vigor é o estatuto de 2009. Realmente é preciso promulgar um
manual, e esperamos que isso
ocorra em breve. Mas, enquanto isso, os juízes seguem atuando como podem", afirmou
John Murphy, promotor-chefe
das comissões militares.
"Algumas mudanças são cosméticas, outras reais", disse
Berrigan. "Ainda estamos longe
de um julgamento realmente
justo. Mas as exigências para
admissão de provas obtidas sob
coerção melhoraram."
Com ou sem mudança, a manutenção do sistema em si e a
enorme liberdade de acusações
que ele permite oferecem motivo suficiente para críticas de
grupos de direitos humanos.
O sudanês Noor, por exemplo, deverá ser julgado por
conspiração e apoio material ao
terrorismo -supostamente liderou um campo de treinamento para terroristas no Afeganistão e entregou um aparelho de fax ao líder terrorista
Osama bin Laden. Mas "apoio
material não deveria ser crime
de guerra", afirmou à Folha
Andrea Prasow, analista sênior
da ONG Human Rights Watch
para terrorismo que já defendeu acusados nas comissões.
"E mesmo que fosse, deveria
ser julgado em tribunais civis.
Comissões não têm credibilidade nem legitimidade."
O promotor Murphy contesta. "A decisão de usar comissões ou tribunais civis é política. Se nossos líderes creem que
é mais apropriado julgar os
acusados em tribunais de guerra, que refletem a realidade de
sua captura em campos de batalha e não são criminosos comuns, então faremos isso."
Prasow não esconde a decepção com Obama pela demora
em cumprir as promessas. "Imprimi um cópia da ordem executiva para o fechamento do
centro de detenção e a colei na
porta do meu escritório no ano
passado. É muito frustrante me
ver ainda em Guantánamo em
abril de 2010."
Texto Anterior: Crise na igreja: Papa foi "célere" contra pedófilo, diz advogado Próximo Texto: EUA exibem avanço nas condições da prisão Índice
|