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São Paulo, domingo, 11 de maio de 2003

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PÁTRIA OU MORTE

Execuções e repressão fazem parte de um cotidiano paranóico no qual a figura do "conspirador" está em toda parte

"Primavera de Cuba" não abala cubanos

Marlene Bergamo/Folha Imagem
Rodoviária no caminho para Santiago de Cuba (sul) com uma das várias inscrições de caráter patriótico espalhadas por todo o país


FELIPE ROQUE
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM HAVANA

O mundo inteiro se comoveu e se indignou com a repressão da ""primavera de Cuba", prontamente interpretada como o último estremecimento de um regime moribundo. Mas a população cubana não apreendeu os acontecimentos nem no mesmo contexto temporal que o resto do mundo nem dentro das mesmas evidências.
Desde janeiro foi lançada uma enorme onda de repressão aos usuários e traficantes de drogas. Depois deles, ela foi rapidamente estendida à economia paralela e aos ""cuentapropistas" (pessoas que trabalham por conta própria) licenciados, também eles propícios a cometerem infrações.
Além disso, os cubanos se habituaram, desde o início do período especial, a recorrer às atividades econômicas mais diversificadas e mais distantes de sua moral e de sua ocupação oficial, manipulando dissimulações e duplos registros para todas as finalidades possíveis, dentro de seus limites.
É fácil para a propaganda castrista apresentar um ato de oposição política como se fosse uma bobagem qualquer, ou a contra-revolução como uma simples tentativa de ganhar dinheiro. Ao insistir sobre o fato de que os jornalistas independentes recebiam US$ 100 por mês, sendo que o salário médio dos cubanos mal chega ao equivalente a US$ 7, ou ao atribuir a eles o sonho da maioria arrasadora dos cubanos -conseguir um visto de entrada nos Estados Unidos-, ficou fácil destituir o objetivo dos dissidentes de qualquer singularidade. Eles acabaram sendo percebidos muito mais como infratores irresponsáveis para os quais a situação se complicou na tormenta do início do ano.
Vale notar que as campanhas de repressão sempre foram oportunidades para reafirmar o compromisso com a revolução, e a prisão dos contra-revolucionários veio acrescentar um toque político à versão 2003. Mais de 75% da população nunca conheceu outra versão da história senão a de uma pátria construída na aspiração à liberdade do jugo espanhol e, mais tarde, do imperialismo americano, ao preço de uma luta que não poderia ter outro resultado senão a vitória ou a morte.
A independência nacional e os direitos sociais continuam, portanto, ameaçados por princípio. Não apenas o desejo dos EUA de tomar conta da ilha é visto como real, como a colaboração de cubanos nesse empreendimento é visto como tendência histórica, desde que, no século 19, uma corrente favorável à anexação quis que Cuba fosse vinculada aos Estados Confederados, para conservar a escravidão. O que querem, portanto, os cubanos que desejam a ajuda dos Estados Unidos: a liberdade, o fim da onipotência do Estado e a abundância, ou uma sociedade em que os mais fortes se dão bem e os mais fracos não têm mais nenhuma proteção legal? O que pensar dos contatos estreitos que os dissidentes mantinham com os funcionários americanos, da entrada livre de que desfrutavam na seção de interesses americanos (Sina) ou de seu financiamento declarado por um governo americano que não parou de fomentar conspirações e manipular os estrangeiros vindos de outros países para alcançar seu objetivo único?
O momento seria de confronto desde que George W. Bush assumiu um compromisso pessoal com a máfia cubano-americana de Miami à qual deveu sua eleição. Cinco espiões cubanos -os heróis prisioneiros do império, cuja missão era proteger a pátria, frustrando os projetos da máfia terrorista de Miami- se encontram presos injustamente nos EUA, enquanto o governo ""fascista-hitlerista" de Bush busca ""instaurar uma ditadura mundial" que ""garantiria sua dominação".
A título de referência ao Congresso pela Defesa da Cultura celebrado sob bombas na Espanha em 1937, a União de Escritores e Artistas Cubanos criou uma frente antifascista. Na ocasião de uma aparição pública que fez em 25 de abril, Fidel Castro expôs as muitas ingerências do chefe da Sina e revelou o objetivo subjacente da conspiração.
Ao restringir a entrega de vistos de entrada nos EUA, o governo de Washington espera fomentar uma crise migratória de grandes proporções, estimulada pela legislação que concede residência americana aos cubanos que ""tocam em solo americano".
De fato, desde setembro de 2002 cinco aviões e embarcações marítimas foram desviados para os Estados Unidos, e 14 tentativas de desvio foram frustradas na primeira semana de abril. Era preciso pôr fim a essa onda de desvios, e é por isso que foi preciso tomar a decisão de fuzilar três tomadores de reféns, afim de defender a revolução, causa suprema que é colocada acima de qualquer consideração individual.
Desse modo, a propaganda conseguiu semear a confusão quanto ao alcance exato do movimento dissidente, na medida em que reduziu tudo à existência de duas forças antagônicas: o imperialismo que agride e ameaça semear o caos, por um lado, e, do outro, o povo que resiste e quer defender suas conquistas. Os crimes cometidos pelos mercenários a serviço do império não podem mais ser vistos em detalhe quando a única coisa que importa é a posição de vítima da população cubana.
O empreendimento de gerar confusão, que, por assim dizer, conseguiu fazer a onda repressiva ser vista como não-acontecimento, também inclui várias outras facetas. As prisões vieram apenas conferir um aspecto concreto ao recrudescimento das tensões que vem sendo observada há meses. É no tempo longo da experiência revolucionária que tem suas raízes a perda do sentido dos atos e das palavras: há mais de 45 anos os cubanos convivem com o traidor, o apátrida, o conspirador, o ""gusano" (verme). Esses personagens reaparecem com tanta frequência que já deixaram de ter rosto ou características próprias.
De que maneira esses mercenários, traidores da pátria, diferem de todos aqueles que já foram tachados com os mesmos epítetos -vendedores no mercado negro, detentores de dólares, fãs dos Beatles ou preguiçosos-, sem que alguém se lembre exatamente por que motivo? Enfim, é realmente incongruente chamar opositores pacíficos de terroristas ou mercenários quando as palavras ""nazistas", ""genocídio" e ""extermínio" já deixaram de ter qualquer significado, sendo usadas de maneira cotidiana e irrestrita.
É verdade que as execuções chocaram a população, mas já faz tempo que esta vive na confusão e em meio a informações fictícias. O verdadeiro espetáculo, aquele que cristalizou todas as projeções dos cubanos, foi o depoimento dos agentes de segurança do Estado, que algumas pessoas acreditam terem estado infiltrados há mais de dez anos entre as fileiras dos dissidentes, ocupando posições de destaque entre eles. Eles vieram reforçar uma paranóia que já atingiu um nível extremo: acredita-se que os órgãos de vigilância sejam de uma eficiência diabólica, capazes das manipulações mais inimagináveis, e que as pessoas nas quais se tem mais confiança podem pertencer a eles. O universo revolucionário remete a um imaginário composto de intrigas, de pequenos esquemas e de ações escondidas, universo dentro do qual o episódio dos mercenários a serviço do império não passa de algo efêmero, comparado a um cotidiano obrigatoriamente dedicado por inteiro à busca de satisfazer as necessidades humanas vitais.

Tradução de Clara Allain


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