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São Paulo, domingo, 11 de maio de 2003

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"Vire-se" é a dimensão central da experiência social

Todas as atividades econômicas e seus controles se reorganizam em torno de roubos, desvios e arranjos internos, numa violação sistemática da legalidade socialista

Os espaços públicos se tornam espaços de concordância e conformidade, e a insegurança impede cada um de formular críticas políticas diante de um interlocutor que não seja de sua inteira confiança

FREE-LANCE PARA A FOLHA, DE HAVANA

A partir da segunda metade dos anos 80, o esgotamento da ajuda soviética mergulha Cuba numa crise econômica sem precedentes. A escassez de vários produtos impõe um empobrecimento generalizado, e os salários se tornam desprezíveis em vista do custo dos produtos básicos, sendo que o período especial se caracteriza pela autorização parcial das atividades econômicas privadas, a descriminação da posse de dólares e a explosão do turismo.
Mais ainda, todas as atividades econômicas e seus sistemas de controle se reorganizam em torno de roubos, desvios e arranjos internos. Essa violação sistemática da legalidade socialista desemboca na criação de normas, e o ""virar-se" passa a ser a dimensão central da experiência social.
Longe de não oferecer perspectiva, a sociedade cubana engana seus cidadãos, prendendo-os na armadilha da esperança: sobreviver, melhorar sua situação financeira, deixar o país. As pessoas buscam um emprego que lhes permita roubar produtos que possam ser revendidos ou procuram as atividades privadas. O entusiasmo estratégico é voltado sobretudo aos empregos nos setores dolarizados da economia, nos quais o turismo ocupa o primeiro escalão. Os salários nesses setores são mais altos, as mordomias, maiores, e os arranjos internos mais lucrativos, tanto que as comissões cobradas pela intermediação entre turistas e os agentes da economia ilegal são muitas.
As transgressões também fazem todos os cubanos ingressarem na categoria de infratores, de acordo com os rótulos adotados pelo regime. Esse desnível legal e ético é um estigma, no sentido em que ameaça a todo momento prejudicar a quem o comete, tornando-se, assim, uma desvantagem que é preciso dissimular. Ao nível da quadra, o Comitê de Defesa da Revolução (CDR), composto por todos os residentes com mais de 14 anos, é encarregado de velar coletivamente pelo cumprimento das leis, papel que recai especialmente sobre o presidente, o vice-presidente e o ""encarregado de vigilância". Como cada um participa, de uma maneira ou outra, de atividades contrárias à lei, a reorientação dos comportamentos econômicos inscrita na marginalidade virou algo normal. A generalização das transgressões que resultam na obtenção mútua de benefícios cria um equilíbrio entre estigmas e ameaças, desta vez em nível de vizinhança, de bairro e do local de trabalho.
Enquanto isso, os desejos criados numa sociedade antes acostumada a desigualdades aceitáveis e o trabalho zeloso dos delatores anônimos são espadas de Dâmocles que podem jogar por terra qualquer esperança, a qualquer momento. Pior ainda, as regras do jogo nunca chegam a ser estabelecidas e já sofreram mudanças constantes no decorrer da revolução. O "laissez-faire" do qual desfrutam uns e outros pode ser revogado a qualquer momento, e, periodicamente, grandes ondas de repressão se abatem sobre a economia paralela. Assim, a possibilidade de processos na Justiça nunca é descartada, mesmo que seja possível fazer aplicar a lei de maneira rígida, já que todos a infringem.
Ao mesmo tempo, a propaganda revolucionária e a ""educação" ocupam um lugar cada vez mais importante e insistem com veemência cada vez maior sobre as normas de adesão à revolução: lealdade para com os dirigentes, trabalho (inclusive o voluntário), consciência moral e patriotismo. Não apenas as reuniões das organizações de massa que percorrem toda a sociedade vêm conhecendo um dinamismo novo, como as marchas, os desfiles e os julgamentos abertos vêm se multiplicando, envolvendo milhares de pessoas. Assembléias e congressos se multiplicam, eleições se sucedem, e é a sociedade inteira que se engaja na chamada batalha das idéias.
Além disso, se as jornadas de trabalho voluntárias ou a participação em campanhas de prevenção são menos assíduas do que antes, elas não podem ser ignoradas pelos cidadãos obrigados a administrar seu capital político. Ao nível do CDR, do centro de trabalho ou da escola, um responsável faz uma lista daqueles que participaram ou assistiram aos ""programas da revolução". São todos esses antecedentes, assim que uma recapitulação dos ideais da revolução e seus dirigentes, que atestam a qualidade revolucionária de cada pessoa. É participando ostensivamente das diversas manifestações de apoio à revolução que cada um se garante.
Mais do que sobre o respeito pelas normas de comportamento público, o não-entrave das atividades de luta pelas autoridades se baseia sobre o fortalecimento constante do capital político. Assim, os espaços públicos se tornam, mais do que nunca, espaços de concordância e conformidade, e a insegurança impede cada um de formular críticas políticas diante de um interlocutor que não seja de sua inteira confiança.
As relações de poder dominadas pelas autoridades também se apóiam sobre a utilização funcionalista dos espaços públicos por uma população que fez do conformismo um recurso estratégico. Qualquer esperança de melhora é um freio à crítica da ordem castrista. Trabalhar ou estudar, mesmo de forma forçada, permite que as pessoas não corram o risco de se verem sujeitas à lei da periculosidade (o encarceramento dos ociosos). O acesso aos empregos cobiçados, assim como a obtenção de uma licença que autoriza o trabalho ""por conta própria", depende de um atestado da qualidade revolucionária do candidato, atestado esse que será dado pelos relatórios das organizações de massa. Quanto à carta de convite para viajar a um país estrangeiro, ela só será avalizada pelas autoridades se o candidato satisfizer às normas de comportamento revolucionário. Um pedido de visto formulado junto à representação dos interesses americanos em Cuba é condicionado à prova de que o candidato possui família nos EUA, experiência profissional de três anos na economia oficial e a ausência de antecedentes criminosos.
Os cidadãos do ""mundo livre" se perguntam se a manifestação do 1º de Maio que reuniu 1 milhão de pessoas na praça da Revolução, em Havana, refletiu ""a adesão do povo" ou ""a preocupação em continuar vivos". Muito mais do que isso, ela foi um sintoma da armadilha totalitária cubana, e a união aparente dissimulou a fragmentação e a insegurança que ainda garantem bastante tempo no poder ao ""Barba". (FR)


Tradução de Clara Allain


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