São Paulo, domingo, 11 de junho de 2006

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Esquerda do Uruguai se divide entre Mercosul e EUA

Disputa entre "neoliberais" e tradicionais racha gabinete do presidente Vázquez

Ministros ameaçam com renúncia e a maior central sindical do país convocou greve contra tratado de livre comércio com Washington

RAUL JUSTE LORES
DA REPORTAGEM LOCAL

Com o distanciamento do Mercosul e sua vontade de assinar um acordo comercial com os EUA, o presidente Tabaré Vázquez parecia demonstrar que a esquerda uruguaia tomou um novo rumo. Só parte dela. Na última semana, não faltaram sinais de descontentamento em vários setores da Frente Ampla, a coligação que governa o país. A esquerda uruguaia está às vésperas de um racha.
Dois populares ministros ameaçaram renunciar na última semana, e a maior central sindical do país convocou para o próximo dia 22 uma greve geral contra o acordo comercial com os americanos. O cabo-de-guerra entre os setores mais "neoliberais" e a esquerda tradicional se tornou público.
De um lado estão o ministro da Economia, Danilo Astori, dirigente histórico da esquerda, e o ministro da Indústria, Jorge Lepra, o único nome do governo que veio de fora da coligação. É o setor mais forte do governo, que está decepcionado com o Mercosul e quer dar prioridade para um tratado de livre comércio (TLC) com os EUA. Defendem disciplina fiscal, controle de gastos e abertura econômica. Astori é chamado de "Palocci uruguaio".
Do outro lado, está o político mais popular do país, o ministro da Agricultura, José Mujica. Ex-guerrilheiro tupamaro, que ficou dez anos preso, ele foi o senador mais votado do Uruguai (seu partido teve mais de 30% do total de votos da Frente Ampla). Mujica não disfarça seu desconforto com a política econômica. "A percepção é de que está mais fora do que dentro do governo", publicou na sexta-feira a revista "Brecha", principal semanário de esquerda do país. Em entrevista à "Brecha", ele pediu "menos ortodoxia econômica".
Do lado dele está o chanceler Reinaldo Gargano, do Partido Socialista, que ameaçou renunciar se o TLC for mesmo assinado. Gargano é o membro mais pró-Mercosul do ministério de Tabaré.
"A saída deles vai dar um sinal claro de quem manda no governo e de que a esquerda mudou definitivamente de rumo", diz um experiente embaixador. Mujica quer refinanciar as dívidas dos produtores agropecuários do país. O ministro da Economia vetou o plano, dizendo que isso vai criar um rombo nas finanças. Mujica acha que o setor produtivo do país é penalizado pela política econômica.

Frustração com vizinhos
O distanciamento uruguaio do Mercosul tem as mais variadas razões. Há seis anos, o Uruguai vendia 35% de suas exportações para o Brasil. Hoje elas representam apenas 13,6%. Já as exportações para os Estados Unidos pularam para 22,5%, mais do que as vendas para Brasil, Argentina e Paraguai juntas. O ministro da Economia vê o bloco como "uma camisa de força" e quer assinar mais tratados de livre comércio com outros blocos, sem precisar da aprovação do Mercosul.
Para piorar, a relação com Buenos Aires é péssima. Há mais de um ano, Argentina e Uruguai disputam a construção de duas fábricas de celulose, uma espanhola e uma finlandesa. Como os investimentos foram para o Uruguai, os argentinos decidiram infernizar a vida do vizinho. Dizem que as fábricas são poluentes e afetam o rio Uruguai, que divide os países.
O presidente Néstor Kirchner transformou o entrevero em causa nacional e levou o vizinho para a Corte Internacional de Justiça de Haia. Uma estrada que divide os dois países foi bloqueada por manifestantes argentinos por meses, afetando o turismo, uma das principais fontes de renda do país. O Brasil não interveio, dizendo que era assunto "bilateral".
"A sensação generalizada no Uruguai é que a postura da Argentina contra as fábricas de celulose se explica pela sua política interna. Kirchner busca dividendos", diz o professor do Instituto de Ciências Políticas da Universidade de la República Federico Traversa.
"A ausência de mediação do Mercosul frustrou ainda mais as expectativas em relação ao bloco." A central sindical do país, PIT-CNT, decidiu por unanimidade convocar uma greve geral no dia 22 de junho contra a política econômica e contra o TLC com os EUA.
Vários diplomatas ouvidos pela Folha confirmam que o país deve assinar um instrumento jurídico semelhante a um TLC com os EUA, na próxima reunião mista EUA-Uruguai. "Podem até dar outro nome, disfarçado, para não ferir sensibilidades." As mesmas fontes apostam que o país está a um passo de pedir um "waiver" (perdão) aos demais sócios do Mercosul para negociar o tratado com os EUA.
O distanciamento do Mercosul e o flerte com os EUA começaram durante o governo do conservador Jorge Battle, antecessor de Tabaré Vázquez. Apesar da chegada da esquerda ao poder pela primeira vez, a iniciativa de Battle foi mantida.


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