São Paulo, domingo, 11 de agosto de 2002

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ARGENTINA

Em quarto nas pesquisas, Luis Zamora declara que "é hora de confrontar o Fundo" e atrai eleitores da classe alta

"Candidato dos ricos" quer romper com FMI

DE BUENOS AIRES

O deputado comunista Luis Zamora é o argentino que melhor sustentaria a tese de que a crise econômica ressuscitou antigos movimentos de esquerda na América Latina, como escreveu o jornal britânico "Financial Times" há duas semanas.
Quarto lugar nas pesquisas de intenção de voto para a Presidência, Zamora, 54, defende a ruptura com o FMI (Fundo Monetário Internacional). Em um país arrasado pela maior crise econômica de sua história, as propostas do deputado passaram a ser levadas a sério inclusive pelas classes mais altas da população, onde estão concentrados seus eleitores.
"Algo novo está surgindo na América Latina", diz Zamora. Parte de sua popularidade se deve à imagem de honestidade que construiu. Em 1993, abriu mão da aposentadoria a que teria direito como ex-deputado. Para sobreviver, chegou a vender livros de porta em porta.
Hoje, de mandato novo, doa parte do salário para o partido -Autodeterminação e Liberdade, fundado por ele mesmo. Diz possuir como únicos bens um carro ano 1994 e uma casa. "Ainda está hipotecada, mas terminarei de pagar em três anos", explica Zamora, que recebeu a Folha em seu gabinete na Câmara. No local, há apenas um aparelho eletrônico, o telefone, em meio a pilhas de papéis e livros. Também há um computador, que não funciona. "A deputada que me antecedeu levou o disco rígido quando acabou seu mandato."
(JOÃO SANDRINI)

Folha - Por que a economia argentina entrou em colapso?
Luis Zamora -
Desde 1976, os civis e militares que governaram a Argentina aceitaram políticas destrutivas para o país, que levaram à nossa recolonização. Permitiram que milhões de dólares fugissem por distintas vias: pagamento da dívida externa, remessas de lucros ao exterior... E o que sobrou? Quase nada. E agora vem a Alca [Área de Livre Comércio das Américas" para levar o resto.

Folha - A recuperação passa pelo acordo com o FMI?
Zamora -
Crer que o FMI possa ajudar a Argentina é uma idéia errada. Percorremos esse caminho nos últimos 25 anos, e o que conseguimos? Um número recorde de 19 milhões de pobres. Não é o suficiente para percebermos que a saída não está em acordos com o FMI? É hora de confrontar o FMI. Não podemos reconhecer a dívida externa.

Folha - Nesse caso, não haveria uma fuga maior de capital, prejudicando a recuperação argentina?
Zamora -
O maior problema da Argentina e de toda a América Latina não é receber capital estrangeiro, mas impedir que nossa riqueza fuja para o exterior. A Argentina pagou US$ 225 bilhões em juros nos últimos 20 anos. Não há país que aguente isso.

Folha - Após uma hipotética ruptura com o FMI, como a Argentina voltaria a crescer?
Zamora -
Já destinamos neste ano mais de US$ 3 bilhões para pagar a dívida externa. Em vez de esse dinheiro ir embora, que fosse emprestado aos empresários para comprarem máquinas e produzir. E, depois, que houvesse a reforma agrária. Arrendar terras públicas e privadas improdutivas. Triplicaríamos a produção, haveria emprego, exportação, comida e reativação da economia.

Folha - Falar em exportações não seria subestimar a reação mundial contra o rompimento de contratos? Veja Cuba...
Zamora -
É impossível que todos os países do mundo respeitem embargos. O capitalismo busca vendas, negócios. Reconheço que o capitalismo também tem princípios políticos gerais que não podem ser subestimados. Será um caminho muito duro. Mas que outro caminho há? Não existe com o FMI discussão sobre emprego, salários, alimentação infantil, desenvolvimento. O que há é um plano de austeridade para assegurar um superávit fiscal que seja suficiente para pagar os juros.

Folha - O FMI também discute assuntos como o fim do "corralito [nome dado para o congelamento dos depósitos bancários", não?
Zamora -
O FMI defende uma solução errada para o problema. Os bancos deveriam honrar os depósitos dos correntistas, mas o FMI quer obrigar o governo a arcar com esses custos. Se os bancos não honram os depósitos, que sejam liquidados. Esse dinheiro que o governo gastou ajudando bancos deveria garantir emprego e comida para a população. Mas o governo insiste em usar os recursos apenas para pagar dívida. A América Latina está toda assim.

Folha - Talvez porque ninguém veja uma saída para a situação...
Zamora -
Por isso temos de nos integrar. A Argentina sozinha não consegue. Também deve haver disposição de Brasil, Paraguai, Bolívia para construirmos um projeto para a América Latina. Vejo protestos contra privatizações no Paraguai. A esquerda chegou ao segundo turno na Bolívia. Se Lula ganhar no Brasil, a América Latina será sacudida.

Folha - O sr. acredita que o governo de Lula venha a ser um sucesso?
Zamora -
Isso importa menos. Sua vitória já daria um estímulo para a luta popular em outros países, porque não seria visto por ninguém como um triunfo dos EUA. O que todos vão ver é que o maior país da América Latina está sendo governado por trabalhadores. Vejo algo novo surgindo na América Latina.

Folha - Qual a sua opinião sobre a Alca?
Zamora -
A Alca é o fim dos países latino-americanos, vai nos levar à estrangeirização total. Precisamos de nova Constituição para discutir um projeto de país, soberania, integração regional e confrontação com os EUA, com o capitalismo. Estamos passando por uma revolução intelectual.

Folha - Qual?
Zamora -
Uma que começou nos dias 19 e 20 de dezembro, quando milhares de argentinos saíram às ruas espontaneamente para pedir a renúncia de De la Rúa. Ninguém sabia aonde ia, mas, de repente, estavam todos na praça de Maio. Foi lindo.


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