São Paulo, domingo, 11 de novembro de 2007

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Leste rico do Congo revive guerra civil que já matou 4 milhões

Intervenção da vizinha Ruanda prolonga crise; 11 anos após início do conflito descrito como pior tragédia humana desde a 2ª Guerra, ONU mapeia violações

CLARA FAGUNDES
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Onze anos após o início da guerra civil descrita pela ONU como "maior tragédia humanitária desde a 2ª Guerra Mundial", o Alto Comissariado da organização liberou US$ 2,3 milhões para mapeamento das violações aos direitos humanos cometidas entre março de 1993 e junho de 2003 na República Democrática do Congo. A investigação tardia deve chegar a tempo de recolher corpos dos novos conflitos no leste do país.
Confrontos entre o general renegado Laurent Nkunda e o governo agravaram a crise na fronteira com Ruanda. Autoproclamado defensor dos tutsis -cerca de 300 mil dos estimados 60 milhões de congoleses- Nkunda rompeu com o governo em setembro de 2006. No Kivu do Norte, Província mais atingida, 750 mil pessoas deixaram suas casas.
Não é uma guerra tribal, afirma o congolês Muzong Kodi, analista da Chatham House e ex-diretor da ONG Transparência Internacional na África. "Quando ouvem falar em África, as pessoas tendem a reduzir tudo a conflitos étnicos, mas o que está em disputa é o controle das minas", disse ele à Folha. O país é rico em cobre, cobalto, zinco, urânio, ouro e diamante.
Os 16.475 militares da Monuc (Missão da ONU no Congo), estabelecida em 1999, foram poucos para conter o recrudescimento da violência no leste da RDC. Com dificuldades para fazer chegar ajuda humanitária a áreas conflagradas, a Monuc foi duas vezes atacada por civis no Kivu do Norte, na semana passada. Intervenção do Exército congolês para conter a multidão revoltada com a carestia resultou em duas mortes, inclusive de um bebê.

Heróis e vilões
"Temos que trabalhar com o que temos. É a maior missão de manutenção de paz em ação no momento, envolve o mesmo número de militares que tínhamos em Serra Leoa em 2001. Só que Serra Leoa é 42 vezes menor que o Congo", diz o porta-voz da Monuc, Kemal Saiki.
"Nenhum país quer arriscar soldados para conter um conflito que parece tão distante", lamenta o americano Adam Hochschild, autor do livro "O Fantasma do Rei Leopoldo" (Companhia das Letras, 1999), sobre a colonização da Congo. Além disso, disse Hochschild à Folha, não há na comunidade internacional a sensação de que exista uma instância capaz de, se pressionada, pôr um fim ao conflito. Nessa guerra é difícil rotular heróis e vilões.
Não é o que pensa Kodi. O analista afirma que na raiz do conflito está a "usurpação clara do subsolo congolês por Ruanda, Uganda e Burundi", uma "inequívoca" violação das leis internacionais.
Segundo o congolês, pressões sobre os três países, que apoiaram a derrubada de Mobuto por Laurent Kabila (pai do atual presidente) em 1997, mas invadiram a RDC após ruptura com o ex-aliado, poderiam ter contido a guerra. Concluída oficialmente em 2003, após quase quatro milhões de mortes, a tragédia continua no leste do país. Em parte, afirma Kodi, porque "Ruanda financia rebeldes que não têm nenhum apoio popular".
O país alega combater as Forças Democrática de Libertação de Ruanda (FDLR), grupo responsável pelo genocídio de 1994. Muitos dos seus líderes fugiram para o país vizinho após intervenção da ONU em Ruanda. Desde 2002, a Monuc repatriou 15.343 combatentes estrangeiros, a maioria da FDLR, banida do atual governo de maioria tutsi ruandês.
O terror imposto aos civis é partilhado por Mayi-Mayis -milícias contrárias aos tutsis pró-Ruanda-, Nkunda e pelas próprias Forças Armadas. A reforma do Exército, costurado a partir de antigas milícias privadas reunidas em 2003 pelo acordo de conciliação, é apontada unanimemente pelos analistas como fundamental para a paz no país. Os "senhores da guerra" mantêm sob controle direto parte de suas antigas tropas. Saques e estupros são freqüentes e envolvem, inclusive, os capacetes azuis: 63 foram expulsos da Monuc por abusos contra refugiadas.
"Nossos soldados são treinados para agir como uma força de ocupação desde o período colonial. Essa herança perdurou sob o regime Mobuto [ditador congolês oriundo do Exército colonial] e persiste até hoje, com o desprezo pelos civis disseminado entre todos combatentes", diz Kodi.
Propriedade do rei Leopoldo 2º "herdada" pela Bélgica como colônia em 1908, a RDC inspirou os horrores descritos em "O Coração das Trevas" pelo anglo-polonês Joseph Conrad, que visitou o país no final do século 19. Cem anos depois, Hochschild organizaria documentos da época numa narrativa histórica brutal.


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