São Paulo, domingo, 11 de dezembro de 2005

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ARTIGO

A era do ceticismo

DAVID BROOKS
DO "NEW YORK TIMES"

A guerra é um acontecimento cultural. A Primeira Guerra Mundial destruiu a velha ordem social da Europa e desiludiu uma geração de jovens americanos de talento. A Segunda Guerra Mundial alimentou um sentimento de unidade e autoconfiança nos EUA. O Vietnã ajudou a desencadear a contracultura.
A Guerra do Iraque não terá esse tipo de impacto cultural abrangente, mas já modificou o espírito dominante em nossa época. Verifica-se uma queda marcante na fé que os americanos nutrem em suas instituições. A confiança no governo caiu para mais ou menos a metade do que era em 2001. Hoje, segundo pesquisas do Centro de Pesquisas Pew, mais americanos pensam que o governo quase sempre é perdulário e ineficiente.
Houve uma queda marcante no apoio dado às Nações Unidas. Ocorreu um aumento acentuado no número de pessoas que dizem que, em matéria de problemas mundiais, os Estados Unidos deveriam cuidar de sua própria vida. O sentimento isolacionista está mais ou menos no mesmo patamar que estava logo após a guerra do Vietnã.
Os americanos andam cada vez mais cínicos em relação à política e aos partidos políticos. Apenas 24% dizem que os republicanos representam suas prioridades, e apenas 26% acham que os democratas os representam, segundo pesquisa da NBC/"Wall Street Journal".
É evidente que a desaprovação é maior em relação aos republicanos, mas o público se mostra igualmente disposto a pensar o pior dos democratas. De acordo com sondagem da RT Strategies, 70% dos americanos dizem que as críticas à guerra formuladas pelos democratas prejudicam o moral das tropas. A maioria dos americanos acredita, cinicamente, que os democratas estão criticando a guerra apenas para obter ganho político. Apenas 30% acham que as críticas visam genuinamente ajudar os esforços americanos.


A guerra causou uma queda marcante na fé que os americanos nutrem por suas instituições

Instalou-se no pais um clima de pessimismo onipresente. Aproximadamente dois terços dos americanos dizem que o país está avançando no rumo errado. O Iraque não é a única questão que motiva esse pessimismo acentuado, mas é a mais importante (o furacão Katrina exerceu impacto surpreendentemente pequeno).
E os americanos estão nesse estado de ânimo pessimista apesar da crescente confiança dos consumidores e do crescimento econômico forte, de 4,3%. Os americanos não estão pessimistas em relação a seu próprio futuro individual, mas em relação a seus líderes e ao futuro do país.
Nesse ambiente de desânimo generalizado, o pêndulo político já não oscila no eixo esquerda-direita. Como observou Christopher Caldwell recentemente no "Financial Times", o mesmo fenômeno vem atingindo um país após outro: o partido governista perde força, mas o partido de oposição não ascende. Os problemas à direita não levam a um fortalecimento da esquerda, ou vice-versa. Em outras palavras, os democratas podem até vencer as eleições em 2006 ou 2008, mas isso não significa que vão conquistar a confiança do público, nem que terão seu aval para transformações.
Nesse clima de exaustão, o pêndulo político oscila do engajamento ao cinismo. Quando os eleitores polarizados perdem a confiança em seu próprio lado, eles não trocam para o outro -apenas se afastam do debate político.
O principal efeito cultural da guerra do Iraque é que estamos ingressando num período de ceticismo. Muitos americanos verão com ceticismo a possibilidade de seu governo saber o suficiente para poder realizar grandes empreendimentos ou ter competência suficiente para executar políticas de grande alcance. Mais pessoas enxergarão com ceticismo os planos para moldar a realidade segundo nossos desígnios ou resolver problemas profundos que têm origens na história e na cultura. Serão céticas em relação a nossa capacidade de ajudar ou compreender sociedades distantes no Oriente Médio, na África ou qualquer outra parte do mundo.
Teoricamente, o ceticismo conduz à prudência, que não é uma qualidade negativa. Mas quando é tingido com cinismo, como acontece agora, o ceticismo vira passividade. Em eras dominadas pelo ceticismo, as pessoas se prestam facilmente a achar que problemas de longa duração e alcance, tais como a pobreza e o despotismo, são intratáveis e que não vale a pena tentar combatê-los. Elas acham fácil adiar qualquer ação em relação a problemas distantes mas de grande monta, tais como os déficits, que não impõem sofrimento imediato. Acham fácil postergar a ação com relação a problemas externos, tais como as ambições nucleares do Irã, em lugar de fazer frente a eles.
Como já observou o economista da Universidade Harvard Benjamin Friedman, os americanos lançam reformas sociais quando estão se sentindo confiantes, não quando estão desanimados e inseguros.
A determinação de reconstruir Nova Orleans, aproveitando o momento pós-Katrina, já se dissipou. O desejo de ambos os partidos de lançar iniciativas de monta com relação à política energética não está indo a lugar algum. Mesmo o problema de Darfur evoca pouco mais do que suspiros de lamento e indiferença.
O que está em jogo no Iraque não é apenas o futuro desse país, mas o futuro da autoconfiança americana. Talvez tenhamos de passar por um ciclo de ceticismo antes de podermos desfrutar um novo ciclo de esperança.

Tradução de Clara Allain

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