São Paulo, domingo, 12 de janeiro de 2003

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Governo de Lula acerta ao utilizar diplomacia mais ativa, diz analista

OTÁVIO DIAS
DA REDAÇÃO

O governo Lula começa bem ao buscar uma diplomacia mais ativa, mas deve fazer isso com realismo, servindo de ponte entre os países mais desenvolvidos e as nações em desenvolvimento. É o que diz Ricardo Seitenfus, 54, professor do mestrado em integração latino-americana da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Santa Maria (RS).
Em relação à crise venezuelana, Seitenfus acha que o Brasil deve atuar, junto com outros países, para impedir que o conflito entre o presidente Hugo Chávez e a oposição desemboque numa guerra civil. "Nem o Brasil nem os EUA podem ficar de fora", diz.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

Folha - Como o sr. analisa os primeiros passos da diplomacia do governo Lula?
Ricardo Seitenfus -
Está sendo auspicioso porque o governo está tendo uma atitude ativa no cenário internacional. O Brasil começa a atuar como um país insatisfeito diante das condições das relações internacionais, onde há três quartos da humanidade em situação difícil e metade em situação de marginalidade ou miséria.
Vejo uma proposta de discutir essas questões, mas com realismo. Há, por exemplo, realismo na provável ida do presidente ao Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, e ao Fórum Econômico Mundial, em Davos [Suíça".
O Brasil quer fazer algo que nunca foi feito, um diálogo entre esses dois mundos. Quer ser uma ponte.
Também achei interessante a nomeação para o Ministério das Relações Exteriores de Celso Amorim, um diplomata muito respeitado, e, ao mesmo tempo, a indicação para a secretaria executiva do órgão de Samuel Pinheiro Guimarães [ex-diretor do Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais do Itamaraty, demitido em 2001 pelo então ministro Celso Lafer por manifestar posição diferente da do Itamaraty em relação à Área de Livre Comércio das Américas". Ele tem um perfil completamente diferente, é hoje o diplomata que mais representa uma ruptura com o governo anterior. Alguns verão contradição nesse jogo sutil. Eu vejo realismo.

Folha - E qual é sua opinião sobre uma eventual intervenção do Brasil na crise da Venezuela?
Seitenfus -
Nos primeiros meses de seu governo, em 1999, o presidente Hugo Chávez chamou um plebiscito para mudar a Constituição. Como democrata, condeno isso porque se moldou uma Constituição à imagem do presidente.
É democrático? É, pois a nova carta foi submetida a plebiscito. Mas é muito difícil um presidente que acaba de ser eleito não conseguir mudar a Constituição dessa maneira. Acho que ele explorou uma situação propícia.
Quando houve uma reorganização da oposição, ocorreu o chamamento, tanto pela oposição quanto pela situação, das massas às ruas.
É algo perigoso, que pode desembocar numa guerra civil. Em certas situações, a comunidade internacional tem o dever de intervir. Foi o caso de Ruanda, onde houve o genocídio de mais de 1 milhão de pessoas.

Folha - Mas em Ruanda ocorria um massacre. É outro caso.
Seitenfus -
Não é outro caso porque a Venezuela poderá viver uma guerra civil. E guerra civil é Kosovo, é Ruanda, mesmo que, no caso, não tenha aspectos étnicos e religiosos. A comunidade internacional precisa agir preventivamente. Tem de ter condições de, se for o caso, impor a paz.

Folha - O que o Brasil poderia fazer? O primeiro passo de Lula em relação à Venezuela -quando apoiou, ainda antes de tomar posse, o envio de um petroleiro ao país- foi criticado pela oposição venezuelana. Lula é visto como pró-Chávez.
Seitenfus -
O Brasil terá de encontrar uma fórmula que lhe dê credibilidade. Será uma prova de fogo para essa diplomacia mais ativa.
Seria muito importante que o Brasil convencesse Chávez de que ele cometeu, do ponto de vista da democracia, um ilícito. Ele precisa aceitar que deu um autogolpe constitucional em 1999. Por outro lado, precisamos atuar para que não ocorra uma guerra civil.

Folha - Como o sr. vê a criação desse "grupo de amigos da Venezuela", uma idéia proposta pelo Brasil e que, segundo o jornal "The Washington Post", poderia ser encampada pelo governo dos EUA? Não seria melhor que a OEA (Organização dos Estados Americanos) continuasse conduzindo sozinha essa mediação?
Seitenfus -
Esse grupo não poderia excluir nem o Brasil nem os Estados Unidos. Quanto à OEA, o órgão possui apenas instrumentos de dissuasão verbal. Já um grupo de países teria por trás Estados, forças econômicas, Forças Armadas. Teria outro peso.

Folha - Em seu primeiro dia no governo, Lula almoçou com Hugo Chávez e jantou com Fidel Castro [ditador cubano", ambos chefes de Estado com relações difíceis com os EUA. O governo começa a sinalizar que terá uma política de enfrentamento com o governo americano?
Seitenfus -
Acho que não. A formação do governo, a política econômica, a continuidade da negociação da Alca, tudo mostra que o Brasil não está enfrentando os EUA, mas que tem uma postura diferente em questões internacionais.
Acho que esses encontros iniciais do Lula têm uma simbologia no plano da imagem. Mas não há ruptura no conteúdo, como seria o caso se houvesse uma moratória da dívida externa.

Folha - Que simbologia?
Seitenfus -
É como se o governo, mesmo que ainda não tenha essa percepção tão clara, quisesse dizer: "Nós não estamos satisfeitos com a ordem internacional tal como ela se apresenta, queremos propor um diálogo internacional, colocar frente a frente os que estão à margem da globalização e aqueles que estão incluídos".


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