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Insubmissão marcou a vida de ditador iugoslavo
DOUGLAS HAMILTON
DA REUTERS, EM BELGRADO
Inteligente, impiedoso e compulsivamente insubmisso, Slobodan Milosevic sempre fez questão
de aumentar suas apostas, até o limite do desastre e além dele, durante uma década de guerras inúteis, em uma tentativa vã de resistir à dissolução da Iugoslávia.
Quando foi enviado a Haia para
julgamento, sob a acusação de ter
comandado as operações de limpeza étnica nos Bálcãs na década
de 90, Milosevic rosnou como um
animal selvagem acuado. "O problema é de vocês", grunhiu aos
juízes que tentavam, em vão, persuadi-lo a se declarar sobre as
acusações que lhe eram movidas.
O ditador da Sérvia e da Iugoslávia não acatava o tribunal de crimes de guerra da ONU, tachando-o de sede da "justiça dos vitoriosos". Mas isso não o impediu
de embarcar em discussões com
testemunhas e promotores.
Era mais ou menos como o seu
primeiro amor, a política. Conduzindo teimosamente a própria defesa, Milosevic começou a sofrer
problemas de saúde cada vez mais
intensos. Depois de freqüentes
episódios de pressão alta e de problemas cardíacos, médicos que o
tratavam tentaram levá-lo a Moscou, em fevereiro, para internação. Mas o tribunal recusou o pedido. Ontem, o ditador foi encontrado morto em sua cela.
Jaula de vidro
Quando o julgamento começou,
há quatro anos, Milosevic encarou os espectadores desdenhosamente por detrás de uma parede
de vidro à prova de balas, e depois
se acomodou, vestido com a sobriedade usual a um tribunal, para um processo que se transformou em maratona de teimosia.
Grisalho e com expressão determinada, protestava sua inocência
de modo incansável. O juiz presidente do tribunal, Richard May,
teve de suportar monólogos intermináveis até renunciar ao posto
por exaustão, em 2004, e morrer
alguns meses mais tarde. O acusado parecia sempre convicto de
sua esperteza jurídica.
Quando o presidente croata Stipe Mesic alertou Milosevic, em
1991, de que ele poderia ser linchado por seu próprio povo, conta Mesic, "ele encostou na cadeira,
soltou uma baforada de fumaça
de seu charuto e disse "veremos
quem terminará enforcado'".
Dez anos mais tarde, Milosevic
ouvia baladas de Frank Sinatra
em sua cela e conversava regularmente por telefone com sua influente mulher, Mirjana. Mas o lado áspero de sua personalidade
estava sempre pronto a aflorar.
Médico e monstro
David Owen, enviado britânico
aos Bálcãs, disse ao tribunal que
Milosevic não era "fundamentalmente racista", e tampouco defensor da supremacia sérvia. Até
seu nacionalismo podia ser considerado ameno, diz o diplomata.
Mas ele nada fez para deter os
massacres, e seu ambicioso plano
para a criação de uma Grande
Sérvia sobre as ruínas da antiga
Iugoslávia foi um fracasso. No entanto o brilhantismo tático e a capacidade de manipulação de Milosevic eram admirados por
aqueles que trataram com ele em
sua função de "negociador da
paz" durante a década de guerras.
O ex-enviado americano aos
Bálcãs, Richard Holbrook, expressou relutante admiração pela
capacidade de Milosevic para levar seus oponentes a cometerem
erros. Mas o general Wesley
Clark, antigo comandante da
Otan, optou por ignorar suas manobras e bombardeou a Sérvia
por 11 semanas, para pôr fim à repressão ordenada por Milosevic
contra os albaneses de Kosovo.
Até então, aos olhos do mundo,
Milosevic era uma espécie de
"médico e monstro", dotado de
um lado útil e apresentável. Mas
ao contrariar os desejos do Ocidente quanto a Kosovo, foi consignado ao rol dos monstros, e seu
país à lista de Estados renegados.
Em transcrições de conversas
telefônicas, a impressão que se
pode formar é a de um déspota
corriqueiro, incomodado pela
pressão da família voluntariosa,
prejudicado pela incompetência
de subordinados sicofantas e grato por um telefonema do então
presidente dos EUA, Bill Clinton.
Por enquanto, não surgiram
gravações que detalhem suas reações quando armas sérvias massacraram civis indefesos em aldeias de Kosovo ou em Sarajevo.
O que quer que ele tenha pensado,
os promotores e as vítimas que
eles representam pretendiam
provar que os atos de Milosevic
conduziram a crimes de guerra.
Ele insistia que agiu para defender os sérvios. Mas há quem acredite que tudo o que desejava era
manter seu poder a qualquer preço. Milosevic colocou a Sérvia no
mapa da maneira mais desfavorável possível, conferindo ao seu
povo uma reputação de nacionalismo violento e impiedoso.
O papel mais importante que ele
exerceu no cenário mundial foi a
assinatura, em Paris, dos acordos
de paz de Dayton, em 1995, para
encerrar a guerra na Bósnia. Foi o
ponto alto de sua carreira.
Mas ele interpretou o Ocidente
de maneira equivocada e se enganou ao avaliar até onde poderia
avançar com suas manobras. Por
fim, ele provou estar errado quanto ao seu povo, ao ser derrotado
em sua campanha por um inédito
segundo mandato como presidente da Iugoslávia, em 2000.
Em 5 de outubro daquele ano,
ainda resistindo aos resultados
das urnas, ele foi derrubado por
uma revolta popular. Seis meses
mais tarde, em 1º de abril, depois
de um cerco de 36 horas à sua
mansão em Belgrado, Milosevic
se entregou e foi levado à prisão.
Tradução de Paulo Migliacci
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