São Paulo, domingo, 12 de março de 2006

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Insubmissão marcou a vida de ditador iugoslavo

DOUGLAS HAMILTON
DA REUTERS, EM BELGRADO

Inteligente, impiedoso e compulsivamente insubmisso, Slobodan Milosevic sempre fez questão de aumentar suas apostas, até o limite do desastre e além dele, durante uma década de guerras inúteis, em uma tentativa vã de resistir à dissolução da Iugoslávia.
Quando foi enviado a Haia para julgamento, sob a acusação de ter comandado as operações de limpeza étnica nos Bálcãs na década de 90, Milosevic rosnou como um animal selvagem acuado. "O problema é de vocês", grunhiu aos juízes que tentavam, em vão, persuadi-lo a se declarar sobre as acusações que lhe eram movidas.
O ditador da Sérvia e da Iugoslávia não acatava o tribunal de crimes de guerra da ONU, tachando-o de sede da "justiça dos vitoriosos". Mas isso não o impediu de embarcar em discussões com testemunhas e promotores.
Era mais ou menos como o seu primeiro amor, a política. Conduzindo teimosamente a própria defesa, Milosevic começou a sofrer problemas de saúde cada vez mais intensos. Depois de freqüentes episódios de pressão alta e de problemas cardíacos, médicos que o tratavam tentaram levá-lo a Moscou, em fevereiro, para internação. Mas o tribunal recusou o pedido. Ontem, o ditador foi encontrado morto em sua cela.

Jaula de vidro
Quando o julgamento começou, há quatro anos, Milosevic encarou os espectadores desdenhosamente por detrás de uma parede de vidro à prova de balas, e depois se acomodou, vestido com a sobriedade usual a um tribunal, para um processo que se transformou em maratona de teimosia.
Grisalho e com expressão determinada, protestava sua inocência de modo incansável. O juiz presidente do tribunal, Richard May, teve de suportar monólogos intermináveis até renunciar ao posto por exaustão, em 2004, e morrer alguns meses mais tarde. O acusado parecia sempre convicto de sua esperteza jurídica.
Quando o presidente croata Stipe Mesic alertou Milosevic, em 1991, de que ele poderia ser linchado por seu próprio povo, conta Mesic, "ele encostou na cadeira, soltou uma baforada de fumaça de seu charuto e disse "veremos quem terminará enforcado'".
Dez anos mais tarde, Milosevic ouvia baladas de Frank Sinatra em sua cela e conversava regularmente por telefone com sua influente mulher, Mirjana. Mas o lado áspero de sua personalidade estava sempre pronto a aflorar.

Médico e monstro
David Owen, enviado britânico aos Bálcãs, disse ao tribunal que Milosevic não era "fundamentalmente racista", e tampouco defensor da supremacia sérvia. Até seu nacionalismo podia ser considerado ameno, diz o diplomata.
Mas ele nada fez para deter os massacres, e seu ambicioso plano para a criação de uma Grande Sérvia sobre as ruínas da antiga Iugoslávia foi um fracasso. No entanto o brilhantismo tático e a capacidade de manipulação de Milosevic eram admirados por aqueles que trataram com ele em sua função de "negociador da paz" durante a década de guerras.
O ex-enviado americano aos Bálcãs, Richard Holbrook, expressou relutante admiração pela capacidade de Milosevic para levar seus oponentes a cometerem erros. Mas o general Wesley Clark, antigo comandante da Otan, optou por ignorar suas manobras e bombardeou a Sérvia por 11 semanas, para pôr fim à repressão ordenada por Milosevic contra os albaneses de Kosovo.
Até então, aos olhos do mundo, Milosevic era uma espécie de "médico e monstro", dotado de um lado útil e apresentável. Mas ao contrariar os desejos do Ocidente quanto a Kosovo, foi consignado ao rol dos monstros, e seu país à lista de Estados renegados.
Em transcrições de conversas telefônicas, a impressão que se pode formar é a de um déspota corriqueiro, incomodado pela pressão da família voluntariosa, prejudicado pela incompetência de subordinados sicofantas e grato por um telefonema do então presidente dos EUA, Bill Clinton.
Por enquanto, não surgiram gravações que detalhem suas reações quando armas sérvias massacraram civis indefesos em aldeias de Kosovo ou em Sarajevo. O que quer que ele tenha pensado, os promotores e as vítimas que eles representam pretendiam provar que os atos de Milosevic conduziram a crimes de guerra.
Ele insistia que agiu para defender os sérvios. Mas há quem acredite que tudo o que desejava era manter seu poder a qualquer preço. Milosevic colocou a Sérvia no mapa da maneira mais desfavorável possível, conferindo ao seu povo uma reputação de nacionalismo violento e impiedoso.
O papel mais importante que ele exerceu no cenário mundial foi a assinatura, em Paris, dos acordos de paz de Dayton, em 1995, para encerrar a guerra na Bósnia. Foi o ponto alto de sua carreira.
Mas ele interpretou o Ocidente de maneira equivocada e se enganou ao avaliar até onde poderia avançar com suas manobras. Por fim, ele provou estar errado quanto ao seu povo, ao ser derrotado em sua campanha por um inédito segundo mandato como presidente da Iugoslávia, em 2000.
Em 5 de outubro daquele ano, ainda resistindo aos resultados das urnas, ele foi derrubado por uma revolta popular. Seis meses mais tarde, em 1º de abril, depois de um cerco de 36 horas à sua mansão em Belgrado, Milosevic se entregou e foi levado à prisão.


Tradução de Paulo Migliacci



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