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IRAQUE SOB TUTELA
Para Jim Clancy, cobertura da guerra foi comprometida pela crença de que Saddam tinha armas proibidas
"Erramos em tudo", diz âncora da CNN
LUCIANA COELHO
DA REDAÇÃO
A mídia americana errou em
sua cobertura da Guerra do Iraque e "falhou vergonhosamente"
ao não conseguir reverter na população a crença generalizada de
que o ex-ditador Saddam Hussein
estaria ligado ao 11 de Setembro,
mesmo depois de os próprios serviços de inteligência dos EUA dizerem o contrário.
O diagnóstico é de Jim Clancy,
um dos principais âncoras da TV
CNN. Do alto de uma carreira jornalística que ultrapassa 30 anos
(23 na CNN), Clancy diz que a mídia americana "engoliu" muito
rápido o discurso de Ahmed Chalabi, o exilado iraquiano que, nos
meses imediatamente anteriores
e posteriores à guerra, serviu como a principal fonte do governo
americano e da mídia do país, ansiosa à espera de alguém que atestasse que Saddam tinha armas de
destruição em massa.
Até hoje, o suposto arsenal proibido não foi encontrado, e contra
Chalabi pesa uma ordem de prisão por crimes financeiros.
Clancy falou à Folha em São
Paulo, onde participou de um debate sobre jornalismo no Congresso anual da Associação Brasileira de Televisão por Assinatura.
A mídia engoliu as
mentiras de Chalabi [ex-informante dos EUA sobre as armas de
Saddam]. Ele parecia uma fonte
confiável de informações. E isso chegou a discursos de
Bush, como se fossem evidências irrefutáveis
Folha - A impressão que ficou sobre o começo do conflito era a de
que toda a mídia americana estava
apoiando a guerra. Já nas últimas
semanas, jornais fizeram mea-culpa. Como o sr. vê isso?
Jim Clancy - Eu falei com gente
que eu pensava que deveria saber
explicar isso e nem eles sabiam.
Um jornalista perguntou outro
dia onde foi que nós erramos...
Bom, nós erramos em tudo. Estava tudo errado. Eu perguntei a
Hans Blix, o ex-chefe dos inspetores de armas da ONU, por que, se
Saddam não tinha as armas de
destruição em massa, ele não cooperou. Blix acha que Saddam não
queria que seus vizinhos soubessem que ele não tinha armas, pois
isso o faria vulnerável, sobretudo
ao Irã. Isso é uma explicação.
Mas a mídia, você definiu bem,
engoliu de uma vez as mentiras de
Ahmed Chalabi. Na CNN, chegamos a verificar algumas das histórias que ele contou, mas aí não tínhamos acesso para confrontar o
que ele dizia com outras fontes e
saber se era verdade.
Ele parecia uma
fonte confiável de
informações. E isso chegou a discursos do presidente americano,
como se fossem
evidências irrefutáveis. Só que aí
chegam os inspetores de armas no
Iraque e o que encontram? Nada.
É aí que o alarme deveria ter
soado, mas a ONU
resolveu manter-se calada. Se a imprensa deveria ter
feito mais? Eu
queria ter sido o
sujeito a dizer que
ele [Chalabi] estava mentindo, que
Saddam não tinha
armas de destruição em massa.
Mas eu não sabia.
Folha - Realmente era difícil, mas o que se questiona é se a mídia fez perguntas suficientes.
Clancy - Foi um erro do governo
presumir e dizer que Saddam
Hussein tinha ligações com o 11
de Setembro. Ainda hoje um
grande percentual de cidadãos
americanos acredita que Saddam
Hussein, de um modo ou de outro, tenha algo a ver com o 11 de
Setembro. Isso é uma falha da imprensa. Uma falha vergonhosa.
Eu repeti isso até perder o fôlego,
mas nem todo mundo nos assiste.
E há quem apóie o presidente
George W. Bush. Estou preocupado porque a verdadeira guerra
contra o terrorismo é travada no
Afeganistão, e foi em grande parte
ignorada.
Folha - Passados 16 meses da
guerra a impressão é que ninguém
sabe dizer ao certo o que acontece
no Iraque.
Clancy - Eu posso dizer com certeza, porque eu
estava lá, que o esforço de reconstrução e de abastecimento está seriamente prejudicado pelos ataques, pelos seqüestros. Há uma
estratégia muito
clara se desenvolvendo ali. O governo Bush está
tentando promover sua agenda e
usa força militar
para fazê-lo. E há
iraquianos que se
opõem a isso, seja
porque os EUA
estão fazendo à
força, ou porque
se opõem à democracia, ou porque
estão sendo governados por pessoas vistas como
fantoches dos
EUA. Ao mesmo
tempo, as pessoas odeiam a idéia
de ocidentais entrando lá. E aí eles
recorrem à coisa mais horrível
que poderiam imaginar: decapitações. E filmam as decapitações e
as usam para espalhar terror.
Folha - Que diferença o sr. vê entre o pós-Guerra do Golfo e o atual?
Clancy - A principal diferença é
que agora as pessoas têm esperança. Só que, neste exato momento, essa esperança está completamente ofuscada pela falta de
segurança, pelo medo que elas
têm de seu futuro imediato. Elas
acham que, no longo prazo, as
coisas serão melhores, mas, neste
momento, elas estão passando
muitas dificuldades. Há um problema imenso de segurança.
Folha - Como o sr. acha que o sentimento de se livrar de Saddam e
de ser ocupado pelas forças americanas se contrapõem?
Clancy - Neste ano eu visitei um
campus universitário em Bagdá e
falei com uma turma de formandos. Fiz exatamente essa pergunta
a uma das estudantes, e ela disse:
"Eu odeio Saddam Hussein e estou muito feliz que ele tenha caído. Mas eu odeio a ocupação. Eu
sonhava em nos tornarmos um
país livre e desenvolvido, como o
Kuait, mas agora temo que fiquemos como a Palestina, onde há
ocupação, onde há resistência".
Folha - O sr. espera uma ocupação longa?
Clancy - Uns cinco anos.
Folha - O que o sr. espera da política externa de um Bush reeleito?
Clancy -Bush tem sido criticado
por não ter tido apoio internacional ao entrar no Iraque. Ele sabe
que no fim das contas é a economia que decide uma eleição. O déficit é enorme, e os gastos militares só o aumentaram. Nossos filhos vão ter de pagar essa conta.
Bush vai ter de mudar sua política. A grande pergunta sobre a
política externa é quanto tempo
os EUA ficarão no Iraque. Depois
de entrarmos lá, não há muita escolha, porque, se for um Estado
falido, o Iraque vai se tornar um
porto seguro para terroristas e
uma ameaça para a segurança regional. John Kerry, se quiser vencer, tem de apresentar um plano
claro do que fazer no Iraque.
Leia a entrevista completa de Jim Clancy na
Folha Online
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