São Paulo, domingo, 12 de setembro de 2004

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ARTIGO

O 11 de Setembro já está fora de moda

WALTER KIRN
DO "NEW YORK TIMES"

Uma amiga minha disse algo horrível, recentemente: "Eu já cansei do 11 de Setembro".
Estávamos assistindo na televisão a um programa fútil de fofocas sobre Hollywood, apresentado por modelos fingindo-se de repórter. Durante um longo intervalo comercial eu apanhei o controle remoto para verificar o que estava passando nos outros canais e acabei parando em uma discussão sobre a guerra contra o terrorismo, em um dos canais de TV a cabo.
Foi quando minha amiga fez seu comentário, acrescentando: "Tenho vergonha de mim por isso, mas é verdade. Eu me cansei completamente".
Disse-lhe que tinha motivo para sentir vergonha, mas à medida que nossa noitada diante da televisão se desenrolava, com uma sucessão de "reality shows" darwinistas e de reportagens picantes sobre a vida amorosa de Britney Spears, ocorreu-me que minha amiga havia simplesmente sido honesta quanto a um fenômeno inegável: graças a um certo processo gradual de mumificação cultural, os ataques realizados três anos atrás se tornaram um símbolo, um emaranhado de mensagens empalhadas, oficiais, que agora precisam competir com novas imagens pela atenção e pelo interesse do país.
Eu não deveria ter me chocado com o fato de que os atentados e seus halos iconográficos se tornassem, em tão pouco tempo, tema de listas de "in e out" nas revistas. Na moda: bonés de caminhoneiro Von Dutch. Fora de moda: camisetas do corpo de bombeiros de Nova York. Na moda: "Fahrenheit 11 de Setembro". Fora de moda: o próprio 11 de Setembro.
Relatório oficial fechou um ciclo
Da mesma forma que a chegada das fotos oficiais do casamento representa o encerramento emocional formal do período de celebração, a publicação do relatório oficial da comissão de inquérito sobre os ataques encerrou o período aberto em 11 de setembro de 2001.
Superficialmente, o objetivo do relatório era descobrir exatamente o que aconteceu naquela sangrenta manhã e oferecer sóbrias recomendações estratégicas para impedir ataques semelhantes, mas, em um nível mais profundo e sombrio, o objetivo era empacotar e lacrar a grande confusão, de modo que ela pudesse ser armazenada sem traumas psicológicos. O relatório se tornou um sucesso de vendas, suspeito, não porque as pessoas realmente desejassem lê-lo, mas porque ansiavam pela satisfação de ter posse física do volume, colocá-lo em suas estantes e depois ir para a cozinha, preparar o jantar.
Nos meses que se seguiram aos ataques, quando o presidente estava incessantemente aconselhando as pessoas a sacudir a poeira e voltar aos shopping centers, eu cautelosamente resisti à complacência. Como é alguém ousava me pedir que voltasse ao "normal"? Como alguém ousava me pedir que deixasse de lado minha sensibilidade?
Eu compreendia, evidentemente, que chegaria o dia em que meu cérebro deixaria de transmitir imagens dos arranha-céus em chamas, dos corpos caindo e das vigas distorcidas, fumegantes, mas minha esperança era que isso demorasse muito a acontecer, e que eu fosse uma das últimas pessoas a esquecer.
A sensação pura de que eu era uma vítima, que me tomava então e que não era maculada por nenhuma culpa ou reprovação pessoal, era poderosa, abrangente e estranhamente embriagante. Eu suspeitava muito de que sentiria falta dela, quando passasse.
E passou. Não me lembro exatamente quando, mas creio que a mudança aconteceu mais ou menos no segundo trimestre deste ano, depois que John Kerry venceu as primárias democratas, e a campanha presidencial começou a tomar impulso verdadeiro. As memórias viscerais dos edifícios caindo foram superadas por reflexões sobre a "questão" do terrorismo e sobre o candidato mais preparado para enfrentar esse "desafio".
Um pouco mais tarde, quando Richard Clarke, ex-diretor do programa de combate ao terrorismo do governo dos Estados Unidos, depôs diante da comissão de inquérito sobre o 11 de Setembro e acusou diretamente o governo Bush de desconsiderar a ameaça da Al Qaeda, senti uma ponta de nostalgia pela unidade que sentíamos dois anos atrás, e que se perdeu.
A Guerra do Iraque tornava essa unidade ainda mais difícil, evidentemente (um dos motivos para que eu a desaprovasse), mas ainda assim me decepcionei. Gostava mais das coisas quanto estávamos todos chorando juntos e quando o resto do mundo estava chorando por nós.
De tragédia a uma questão política. Como isso é triste.
O que mais me magoava, porém, era a minha perda de foco, minha frivolidade, minha tolice, minha tendência à distração. Nos dias que se seguiram aos ataques, eu tomara uma séria de decisões sóbrias e sombrias, que tive de admitir, neste ano, não ter nem começado a cumprir.
Não equipei minha casa com painéis solares, declarando minha independência do petróleo importado. Não deixei de jantar em restaurantes caros, doando o dinheiro assim economizado para um fundo de caridade em benefício dos órfãos do Afeganistão. E, o mais lastimável, não deixei de assistir à MTV, que de qualquer jeito sou velho demais para acompanhar. Os neurônios em que eu prometera abrigar os nomes dos heróis do vôo 93 da United Airlines estão ocupados, agora, pelo rosto de Jessica Simpson.
Se esse era um processo de cura, a sensação era pecaminosa. Era mais como se fosse um processo de traição, na verdade. Para onde foi o pesar? Para onde foi a intensidade? Será que minha mente e a mídia que a alimenta não conseguem preservar um espaço sagrado e duradouro, uma vaga permanente no horário nobre para essa tragédia?
Políticos mandam sinais contraditórios
E, para minha surpresa, quando decidi deixar tudo para trás, os candidatos à Presidência (um deles, em especial) me solicitaram que reavivasse a memória. Antes, meu dever era manter a calma e reanimar o carrossel da economia; agora, meu dever é voltar a ficar inconformado, antes de ir às urnas. O que é mesmo que eu devo fazer? Esquecer? Relembrar?
Os sinais são contraditórios. O que os políticos desejavam, enfim concluí, era poder reviver o 11 de Setembro sempre que quisessem, sempre que isso servisse aos seus ambiciosos propósitos. Se pudessem, fariam implantar um chip 11/9 em alguma camada profunda de meu cérebro e o ativariam via controle remoto. Superar meus sentimentos com relação aos ataques é minha maneira de recusar-lhes acesso.
É claro que me sinto culpado a respeito, mas é assim que tem de ser. Algumas emoções, algumas memórias, algumas imagens são simplesmente inflamáveis demais para carregar conosco, especialmente quando certas pessoas estão sempre dispostas a acender um fósforo em minha alma.
É por isso que comecei a enterrar aquela desditosa manhã em um lugar ao qual só eu tenho acesso, sob camadas e mais camadas de informações efêmeras quanto à cultura pop. Eu escavarei para obter essas imagens quando quiser fazê-lo, mas nunca antes. A passagem do tempo as tornou verdadeiramente minhas tanto para contemplá-las quanto para deixá-las de lado.


Walter Kirn é colaborador da "New York Times Magazine"

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