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São Paulo, domingo, 12 de outubro de 2003

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EUA

Para o teórico Neal Gabler, a eleição de Schwarzenegger significa que, afinal, o campo político se transformou em entretenimento

Hollywood em estado puro chega à política

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

O ator Arnold Schwarzenegger foi eleito nesta semana governador da Califórnia porque transportou para o mundo da política o mesmo quadro de valores que seu personagem encarnava em Hollywood. O mundo não passaria de um conflito do bem contra o mal. O bem sempre acaba vencendo porque se manifesta por meio de muita energia e liderança.
Isso não é apenas simplista. É também "bastante estúpido", segundo Neal Gabler, professor da Universidade do Sul da Califórnia e um dos mais originais teóricos sobre a cultura norte-americana.
Schwarzenegger, que ele vê como "a ideologia hollywoodiana em estado puro", transportaria também sérios perigos. Há uma despolitização da política. E a política passa a funcionar como entretenimento.
Gabler se tornou conhecido no Brasil há pouco mais de três anos pelo lançamento de "Vida, o Filme" (Companhia das Letras, 293 págs.), em que aborda justamente essa expansão, invasiva como uma metástase, das formas de viver o entretenimento. A percepção das pessoas o transporta para as demais atividades sociais.
Eis os principais trechos da entrevista de Gabler à Folha.

Folha - O sr. chamou de "pós-realidade" a confusão meio simbiótica entre a vida real e a vida retratada pelo cinema. O conceito também serve para a eleição de Arnold Schwarzenegger, que pulou a cerca que separa Hollywood da política na Califórnia?
Neal Gabler -
Além de ser um personagem do universo de ficção que passa a existir no universo da realidade, há, a meu ver, nessa eleição a governador, um outro fator: o personagem de ficção transporta para o mundo político o mesmo quadro de valores que possuía nos filmes. Ele encarna o "bem" e procura fazer com que também na vida política o bem possa se impor pela força e com isso neutralizar o "mal".

Folha - Não ocorreu o mesmo na Califórnia, em 1966, quando o ex-ator Ronald Reagan também se elegeu governador?
Gabler -
Não creio. Schwarzenegger elegeu-se ao fim de uma breve campanha na qual evitou cuidadosamente a abordagem de questões políticas, financeiras ou administrativas. Ele não respondeu a nenhuma questão de políticas públicas. Reagan, na sua época, apresentou uma plataforma, um programa. Schwarzenegger insistiu agora de forma obsessiva que a Califórnia precisava de liderança e que apenas ele poderia fornecê-la. Trata-se justamente de algo enfático no roteiro de seus filmes, do Schwarzenegger como personagem de ficção. Ele quer dar aos problemas californianos o mesmo enfoque que seu personagem reserva aos vilões dos filmes em que participou.

Folha - Não haveria nisso um esvaziamento da ideologia, que é a matéria-prima fundamental com que se faz política?
Gabler -
Eu diria que Schwarzenegger não está recheado de ideologia política, mas está, ao contrário, recheadíssimo da ideologia de Hollywood. Ela se traduz, na prática, pela idéia de que o sistema político não funciona, de que os democratas foram incapazes de exercer no Estado uma liderança convincente. Essa forma de enxergar o mundo ignora que é preciso negociar e navegar entre forças sociais contrárias. O pressuposto é que é necessária a autoridade de alguém que chega e faz as coisas funcionarem. A vontade pessoal se sobrepõe aos interesses contraditórios da sociedade. Isso é ideologia hollywoodiana em estado puro.

Folha - O presidente George W. Bush seria semelhante? Ele atropelou tradicionais aliados dos EUA para fazer a Guerra do Iraque.
Gabler -
Com certeza, mas eu faria uma distinção importante. Bush se alimenta do imaginário de Hollywood. No entanto a ideologia e a epistemologia que abastecem seu comportamento são de cunho muito mais religioso do que político. Ele possui uma visão religiosa e dogmática do mundo. Há o bem e o mal, há uma única forma de agir, e essa forma é a dele, Bush, porque Deus está ao seu lado. Estamos diante de uma maneira despolitizada de enxergar o mundo, tão despolitizada quanto a de Schwarzenegger. Bush é abastecido pelo fundamentalismo religioso, enquanto Schwarzenegger é abastecido pelo fundamentalismo hollywoodiano.

Folha - Bush teria sido tão eficiente sem a dimensão paralela de espetáculo, de showbiz? A tomada de Bagdá foi um espetáculo.
Gabler -
Há nexos muito claros entre a ideologia hollywoodiana e a ideologia religiosa. A base religiosa do bem contra o mal emigra com facilidade para o entretenimento e para a política.

Folha - O sr. escreveu que esse modo de funcionamento da política dispensa o controle da sociedade. Não haveria um retrocesso da própria democracia?
Gabler -
Creio particularmente que a eleição da Califórnia foi idiota e boa parte dos americanos tem a mesma opinião. Não acredito que o controle social tenha algo a ver com o episódio. É possível que tenha ocorrido uma "engenharia eleitoral" por parte dos republicanos de direita.

Folha - Outra expressão sua é "fator Sza Sza" [a partir do nome da atriz Sza Sza Gabor, até hoje uma celebridade, sem que as pessoas saibam o que ela fez]. Não é perigoso para a democracia eleger uma Sza Sza atrás da outra?
Gabler -
Quando se tem uma "política não recheada de política" é inevitável que estejamos navegando em águas perigosas. Em 1933, na Alemanha, o eleitorado não votou em Hitler por uma vontade profunda de aderir ao nazismo. Hitler era visto como "um grande orador" que entretinha os eleitores. O fator entretenimento foi bem mais forte que a plataforma nazista. Foi incrível.

Folha - O sr. está insinuando que Schwarzenegger seja um fascista?
Gabler -
Não precisamente. Ele pode se tornar algo muito perigoso, por não se ter assumido como fundamentalmente político.

Folha - Em termos práticos, gente como ele é problemática, porque não é possível apoiá-los ou atacá-los, já que eles não têm um núcleo no qual possam se segurar.
Gabler -
Com certeza. O que eles apresentam é a "estética" em estado puro. Ninguém apóia ou deixa de apoiar a estética. É por isso que as pessoas vão ao cinema.

Folha - Voltemos então à questão fundamental: por que é que Schwarzenegger foi eleito governador da Califórnia?
Gabler -
Pelas mesmas razões pelas quais as pessoas vão ao cinema. As pessoas querem se identificar com quem é glamouroso e poderoso, ingredientes que há um século fazem o cinema norte-americano funcionar. Há na eleição e no fato de ir ao cinema a mesma raiz de catarse. O problema é que um filme não transporta uma ideologia política real.

Folha - Para muitos, o padrão cultural do cidadão americano caiu bastante nos últimos anos. Isso não tornaria os EUA mais vulneráveis a esse fenômeno eleitoral?
Gabler -
Não tenho certeza de que o padrão cultural tenha declinado. Há uma evolução da cultura popular, em que ela cresce de tal maneira dentro da sociedade que as demais culturas são aprisionadas pelo que eu chamei de "metástase" [como se fosse a proliferação de células no processo de expansão do câncer]. O que há entre as pessoas deste país é o uso da cultura popular para a inclusão de si mesmas em roteiros familiares, amorosos ou sociais nos quais a questão do "empowerment" (assenhoreamento) é fundamental. As pessoas se sentem desapoderadas na política, mas poderosas em termos culturais.


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