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EUA
Para o teórico Neal Gabler, a eleição de Schwarzenegger significa que, afinal, o campo político se transformou em entretenimento
Hollywood em estado puro chega à política
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
O ator Arnold Schwarzenegger
foi eleito nesta semana governador da Califórnia porque transportou para o mundo da política
o mesmo quadro de valores que
seu personagem encarnava em
Hollywood. O mundo não passaria de um conflito do bem contra
o mal. O bem sempre acaba vencendo porque se manifesta por
meio de muita energia e liderança.
Isso não é apenas simplista. É
também "bastante estúpido", segundo Neal Gabler, professor da
Universidade do Sul da Califórnia
e um dos mais originais teóricos
sobre a cultura norte-americana.
Schwarzenegger, que ele vê como "a ideologia hollywoodiana
em estado puro", transportaria
também sérios perigos. Há uma
despolitização da política. E a política passa a funcionar como entretenimento.
Gabler se tornou conhecido no
Brasil há pouco mais de três anos
pelo lançamento de "Vida, o Filme" (Companhia das Letras, 293
págs.), em que aborda justamente
essa expansão, invasiva como
uma metástase, das formas de viver o entretenimento. A percepção das pessoas o transporta para
as demais atividades sociais.
Eis os principais trechos da entrevista de Gabler à Folha.
Folha - O sr. chamou de "pós-realidade" a confusão meio simbiótica
entre a vida real e a vida retratada
pelo cinema. O conceito também
serve para a eleição de Arnold
Schwarzenegger, que pulou a cerca
que separa Hollywood da política
na Califórnia?
Neal Gabler -Além de ser um
personagem do universo de ficção que passa a existir no universo da realidade, há, a meu ver,
nessa eleição a governador, um
outro fator: o personagem de ficção transporta para o mundo político o mesmo quadro de valores
que possuía nos filmes. Ele encarna o "bem" e procura fazer com
que também na vida política o
bem possa se impor pela força e
com isso neutralizar o "mal".
Folha - Não ocorreu o mesmo na
Califórnia, em 1966, quando o ex-ator Ronald Reagan também se
elegeu governador?
Gabler -Não creio. Schwarzenegger elegeu-se ao fim de uma
breve campanha na qual evitou
cuidadosamente a abordagem de
questões políticas, financeiras ou
administrativas. Ele não respondeu a nenhuma questão de políticas públicas. Reagan, na sua época, apresentou uma plataforma,
um programa. Schwarzenegger
insistiu agora de forma obsessiva
que a Califórnia precisava de liderança e que apenas ele poderia
fornecê-la. Trata-se justamente de
algo enfático no roteiro de seus filmes, do Schwarzenegger como
personagem de ficção. Ele quer
dar aos problemas californianos o
mesmo enfoque que seu personagem reserva aos vilões dos filmes
em que participou.
Folha - Não haveria nisso um esvaziamento da ideologia, que é a
matéria-prima fundamental com
que se faz política?
Gabler - Eu diria que Schwarzenegger não está recheado de ideologia política, mas está, ao contrário, recheadíssimo da ideologia de
Hollywood. Ela se traduz, na prática, pela idéia de que o sistema
político não funciona, de que os
democratas foram incapazes de
exercer no Estado uma liderança
convincente. Essa forma de enxergar o mundo ignora que é preciso negociar e navegar entre forças sociais contrárias. O pressuposto é que é necessária a autoridade de alguém que chega e faz as
coisas funcionarem. A vontade
pessoal se sobrepõe aos interesses
contraditórios da sociedade. Isso
é ideologia hollywoodiana em estado puro.
Folha - O presidente George W.
Bush seria semelhante? Ele atropelou tradicionais aliados dos EUA
para fazer a Guerra do Iraque.
Gabler - Com certeza, mas eu faria uma distinção importante.
Bush se alimenta do imaginário
de Hollywood. No entanto a ideologia e a epistemologia que abastecem seu comportamento são de
cunho muito mais religioso do
que político. Ele possui uma visão
religiosa e dogmática do mundo.
Há o bem e o mal, há uma única
forma de agir, e essa forma é a dele, Bush, porque Deus está ao seu
lado. Estamos diante de uma maneira despolitizada de enxergar o
mundo, tão despolitizada quanto
a de Schwarzenegger. Bush é
abastecido pelo fundamentalismo religioso, enquanto Schwarzenegger é abastecido pelo fundamentalismo hollywoodiano.
Folha - Bush teria sido tão eficiente sem a dimensão paralela de
espetáculo, de showbiz? A tomada
de Bagdá foi um espetáculo.
Gabler - Há nexos muito claros
entre a ideologia hollywoodiana e
a ideologia religiosa. A base religiosa do bem contra o mal emigra
com facilidade para o entretenimento e para a política.
Folha - O sr. escreveu que esse
modo de funcionamento da política dispensa o controle da sociedade. Não haveria um retrocesso da
própria democracia?
Gabler - Creio particularmente
que a eleição da Califórnia foi
idiota e boa parte dos americanos
tem a mesma opinião. Não acredito que o controle social tenha algo a ver com o episódio. É possível que tenha ocorrido uma "engenharia eleitoral" por parte dos
republicanos de direita.
Folha - Outra expressão sua é "fator Sza Sza" [a partir do nome da
atriz Sza Sza Gabor, até hoje uma
celebridade, sem que as pessoas
saibam o que ela fez]. Não é perigoso para a democracia eleger uma
Sza Sza atrás da outra?
Gabler - Quando se tem uma
"política não recheada de política" é inevitável que estejamos navegando em águas perigosas. Em
1933, na Alemanha, o eleitorado
não votou em Hitler por uma
vontade profunda de aderir ao
nazismo. Hitler era visto como
"um grande orador" que entretinha os eleitores. O fator entretenimento foi bem mais forte que a
plataforma nazista. Foi incrível.
Folha - O sr. está insinuando que
Schwarzenegger seja um fascista?
Gabler - Não precisamente. Ele
pode se tornar algo muito perigoso, por não se ter assumido como
fundamentalmente político.
Folha - Em termos práticos, gente
como ele é problemática, porque
não é possível apoiá-los ou atacá-los, já que eles não têm um núcleo
no qual possam se segurar.
Gabler - Com certeza. O que eles
apresentam é a "estética" em estado puro. Ninguém apóia ou deixa
de apoiar a estética. É por isso que
as pessoas vão ao cinema.
Folha - Voltemos então à questão
fundamental: por que é que
Schwarzenegger foi eleito governador da Califórnia?
Gabler - Pelas mesmas razões
pelas quais as pessoas vão ao cinema. As pessoas querem se identificar com quem é glamouroso e
poderoso, ingredientes que há um
século fazem o cinema norte-americano funcionar. Há na eleição e no fato de ir ao cinema a
mesma raiz de catarse. O problema é que um filme não transporta
uma ideologia política real.
Folha - Para muitos, o padrão cultural do cidadão americano caiu
bastante nos últimos anos. Isso
não tornaria os EUA mais vulneráveis a esse fenômeno eleitoral?
Gabler - Não tenho certeza de
que o padrão cultural tenha declinado. Há uma evolução da cultura popular, em que ela cresce de
tal maneira dentro da sociedade
que as demais culturas são aprisionadas pelo que eu chamei de
"metástase" [como se fosse a proliferação de células no processo de
expansão do câncer]. O que há
entre as pessoas deste país é o uso
da cultura popular para a inclusão
de si mesmas em roteiros familiares, amorosos ou sociais nos quais
a questão do "empowerment"
(assenhoreamento) é fundamental. As pessoas se sentem desapoderadas na política, mas poderosas em termos culturais.
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