São Paulo, domingo, 13 de fevereiro de 2011

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OPINIÃO REVOLTA ÁRABE

Já era hora de ruínas do passado como Mubarak caírem

Escritor brasileiro relata onipresença de Kalashnikovs e outras peculiaridades durante passagem pelo Egito


NA IMPOSSIBILIDADE DE ATINGIREM MINISTROS OU MUBARAK, TERRORISTAS EXPLODIAM TURISTAS


JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lembrei que o Egito vivia sob uma ditadura somente quando meus tênis furados levantaram a poeira do Aeroporto Internacional do Cairo.
Logo na fila de imigração fui surpreendido pela quantidade de soldados bigodudos com Kalashnikovs a tiracolo.
Pensei que os egípcios não pareciam ser tão amistosos quanto me relataram (um conhecido costumava dizer que os egípcios eram "os baianos da África"). Foi ali que vi também o primeiro retrato de Hosni Mubarak.
Eu viajara ao Cairo acompanhado de minha mulher para uma estada de um mês. Pretendia pesquisar e escrever um romance cuja trama se passaria na cidade.
Excetuando-se os militares em número anormal por todos os lugares, o tacão da ditadura não se fazia notar.
Talvez suas manifestações estivessem imperceptíveis diante da concorrência desleal da miséria egípcia.
Nos hospedáramos no centro, onde pretendíamos nos manter distantes da fauna irreal de hotéis 5 estrelas.
O ditador começou a se fazer notar com mais insistência quando descobrimos que a antiga estação Ramsés de metrô agora se chamava "Estação Mubarak".
Em nossas conversas em bares e outros antros, a política esteve presente apenas em uma ocasião, ao conhecermos um pediatra chamado Samir El Betagui. Ele citou os atentados contra turistas (o maior deles no balneário de Sharm El Sheik, em 2005, quando três bombas mataram 63 pessoas).
Depois, numa viagem de trem a Luxor, descobrimos que um vagão era ocupado por soldados. E a partir de Luxor o trem seria escoltado por caravana militar.
Na impossibilidade de atingirem ministros ou Mubarak, os terroristas explodiam turistas. Era a forma de sua insatisfação ser percebida pelo mundo, mas, graças à censura, os resultados nem sempre chegavam além das fronteiras.
Certo final de tarde, tivemos nosso único entrevero com a violência ditatorial. Ao sairmos de um restaurante em Zamalek, vimos que o céu estava encoberto por uma tempestade de areia de início de verão. Entusiasmada, minha mulher tentou fotografá-la. Não notamos um prédio estatal detrás da tempestade, de onde saiu um soldado de Kalashinkov em punho. Nos apontando a arma, ele exigiu a câmera.
Então, saída do meio da tempestade, uma alma caridosa que falava árabe impediu que uma bobagem lírica acabasse mal.
Lugar de paradoxos, o Cairo tem monumentos intactos de 4.000 anos enquanto prédios do século 20 despencam na cabeça dos cidadãos. Já era hora de Mubarak, ele próprio uma ruína do passado, cair de vez.

JOCA REINERS TERRON, 42, é autor de "Do Fundo do Poço se Vê a Lua" (Companhia das Letras, 2010)


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