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São Paulo, domingo, 13 de abril de 2003

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Bagdá vira cidade dos mortos-vivos

Saques e destruição desfiguram capital, que ainda não foi totalmente dominada pelos EUA

SÉRGIO DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A BAGDÁ

O farol dos carros ilumina os rostos das pessoas que vêm andando em sentido contrário na escuridão das ruas. Assustadas primeiro, desafiadoras depois, elas tentam cobrir os olhos com as costas das mãos, mas não conseguem esconder o que trazem consigo, geralmente em carrinhos de mão, charretes humanas e porta-malas adaptados em bicicletas: o produto de saques feitos em prédios públicos, palácios, sedes de ministérios, embaixadas e casas e clubes da pequena elite que cercava o regime de Saddam Hussein até a última quarta-feira.
Um garoto de 20 anos puxa uma máquina de xerox retirada de um dos principais palácios do ex-ditador iraquiano, que trazia quatro bustos gigantes em cada canto da construção. Metros adiante, um homem de cerca de 40 anos empurra uma cadeira de escritório com rodinhas ainda no plástico, recuperada dos escombros do prédio ao lado do escritório do ex-vice-primeiro-ministro Tariq Aziz, bombardeado pelo menos seis vezes desde o começo da guerra. Uma menina enche caixas de papelão com pratos, talheres e copos tirados da cozinha do semi-ereto hotel Al Mansur.
É noite em Bagdá, a primeira em que está valendo o toque de recolher imposto pela coalizão anglo-americana, anteontem. Não há energia elétrica na cidade há quase uma semana, não existe Estado há pelo menos três dias e só na sexta marines passaram a fazer a segurança de locais públicos como hospitais e escolas.
Ainda assim, centenas de bagdalis aproveitam a ausência de luz, o vácuo do poder e o fim de quase três décadas de ditadura para ir à forra. Mesmo no contexto da guerra, é outra cidade.
Para quem chega de fora agora, a percepção é de que mortos-vivos tomaram tudo e agora caminham entre escombros e destruição. São cenários em ruínas, como o da ponte 14 de Julho, que liga as duas margens do rio Tigre bem no centro da cidade.
No chão, perto da entrada do que um dia foi do Ministério do Planejamento, hoje perfurado por bombas e mísseis, a estátua de Saddam vestido de líder tribal árabe está estatelada no chão.
Há um Passat branco com a porta e os bancos dianteiros manchados de sangue e o que restou de uma BMW azul-marinho 2002 com as quatro rodas apoiadas em blocos de concreto. O primeiro foi metralhado por marines norte-americanos assustados com a possibilidade cada vez mais presente dos homens-bomba (mas este era apenas um civil); o segundo estava na garagem de uma embaixada abandonada às pressas antes do dia 20 de março, quando tudo começou.
Em três ou quatro pontos da cidade, em bairros ainda dominados pelos soldados da Guarda Republicana fiéis ao antigo regime ou pelos fedayin, ainda queimam tambores de petróleo.

15 horas, US$ 1.500
A volta da Folha à capital iraquiana dez dias depois consumiu 15 horas e US$ 1.500, o preço médio agora cobrado pelos motoristas para fazer a rota Amã-Bagdá. Se antes a inflação era justificada pelos bombardeios constantes, agora são os saques os culpados.
Realmente, ao longo dos 600 quilômetros que ligam Trebil, na fronteira jordaniana, ao centro da cidade há relatos recentes de grupos armados parando comboios de viajantes e levando tudo, até roupas e documentos. A segurança é precária, pois a coalizão só controla alguns pontos. A começar da alfândega, abandonada pelos funcionários iraquianos na manhã de quarta-feira, saqueada e semidestruída durante as horas seguintes e finalmente invadida por marines anteontem.
No escritório central abandonado, um dos dez que antes o viajante era obrigado a passar até ganhar o direito de entrar no Iraque, um retrato de Saddam Hussein jaz aos pedaços no chão, ao lado de uma de suas frases, ditas numa visita ao local poucos meses antes: "Estou feliz agora porque há alguém na fronteira de Trebil fazendo sua missão".
Não mais. Quem faz a missão agora é o soldado Smiley, de calção e barba rala, um dos dez que se dividem na função de checar os passaportes de quem entra, auxiliados por dois tanques e dois caminhões-tanques. Vistos não são mais necessários e portadores de documentos iraquianos, iranianos e sírios são chamados de lado para um interrogatório mais extenso. Vencida a burocracia, a coalizão vai aparecer apenas em mais um posto de checagem, 250 quilômetros para a frente.
Mas rastros de sua passagem estarão pela viagem inteira, na forma de veículos militares iraquianos destruídos, queimados ou simplesmente desarmados e largados no acostamento. É perto da capital, porém, que a guerra em progresso se faz mais presente.
A começar pelo cheiro. Foram 3.000 soldados iraquianos mortos apenas numa das batalhas para a tomada do aeroporto, a maioria deles ainda insepulta. Se o vento está vindo da direção de Bagdá, como na noite de sexta, é insuportável seguir de janelas abertas.
Além disso, há carros, civis e militares, destruídos às dezenas, assim como ônibus municipais e escolares. Pequenos incêndios provocados pela população, em lugares como a delegacia distrital, o escritório da estatal de petróleo ou a sede local do partido Baath, continuam fumegando.
Olhando tudo, gigantescos, dezenas e dezenas de tanques norte-americanos, espalhados por todas as vias de acesso, pelas pontes e fazendo as barreiras dos postos de checagem. No céu, comboios de helicópteros cuidam de espalhar mais o cheiro. A guerra em Bagdá ainda não acabou.


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