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São Paulo, domingo, 13 de abril de 2003

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De volta a outra Bagdá

Dez dias depois, a volta a Bagdá.

É outra cidade. Comparada com a Bagdá atual, dos saques, da falta de luz, da violência civil, da pilhagem de hospitais, da falta de comando, a Bagdá das duas primeiras semanas de guerra era Nova York ou Genebra, na Suíça.

É uma cidade-zumbi, em que as pessoas caminham pela rua podendo fazer o que querem pela primeira vez em três décadas, mas sem saber o que fazer.

Tudo o que era do Estado está sendo saqueado. O problema é que tudo era do Estado, de hospitais a casas de câmbio, passando por parques de diversão e muitos restaurantes.

As únicas construções preservadas são as mesquitas. E também igrejas de outras religiões, como as católicas (são várias).

Aliás, um dos que mais trabalha é o núncio do Vaticano, que toca uma espécie de embaixada local do papado e dá passaportes provisórios para as milhares de pessoas sem documentos que querem deixar o país.

Muda a desgraça, mudam as prioridades. Agora, o artigo mais procurado no comércio é uma tomada com eletricidade. Há bagdalis que sabem onde estão as menos de dez que funcionam nos hotéis, e cobram US$ 50 por hora de uso.

Outros aproveitam a ex-função para faturar. Desde a queda de Saddam, o barbeiro do Palestine tem tido pouco trabalho. Em compensação, aluga saídas de eletricidade de suas cadeiras para interessados em energia. Há fila de espera.

Uma das frases mais ouvidas é: "A polícia agora sou eu!", no meio de discussões, quando uma das partes ameaça chamar a polícia. Que não existe mais.

As notas de dinar iraquiano, que trazem a efígie de Saddam em todos os valores, desapareceram e viraram item de colecionador. Uma de 10 mil dinares, a mais rara hoje, pode custar até US$ 10. O último câmbio informal antes da queda do regime era de US$ 1 para 3.000 dinares.

Ainda na fronteira jordaniana, o governo obriga o viajante a assinar dois papéis, um eximindo o rei de responsabilidade pela vida de quem se arriscou a entrar no Iraque, outro dizendo que os que forem mortos no caminho não podem processar o reino em busca de indenização.

Do lado iraquiano, os sinais de que os funcionários deixaram o que estavam fazendo pelo meio assim que ouviram da queda de Saddam estão por todos os lugares. Na chamada "sala dos oficiais", onde as propinas eram cobradas para que as bagagens fossem liberadas, um prato repousa sobre a mesa com uma coxa de frango pela metade.

Nosso motorista no trajeto Amã-Bagdá, o terceiro da série, é uma mistura de Nietszche e Raul Seixas. Iussef é jordaniano de origem palestina (como 82% da população, clamam os palestinos; o governo diz que são 42%) e desdenha dos saqueadores. "Que venham, não tenho medo."

Ao dirigir, tem um irritante tique: olha constantemente de um lado para o outro, parecendo estar checando os espelhos. Várias vezes por minuto. Só percebemos que se tratava de uma mania quando reparamos que sua caminhonete não tem espelhos. Quebraram numa das viagens.


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